15.11.22

Prometia-se o silêncio

dEUS, “Must Have Been New”, in https://www.youtube.com/watch?v=SUCUO5k0MLg

Prometia-se o silêncio na fachada corrompida pelas falas ciclópicas. O atropelo de palavras tornava o ar insuportavelmente insidioso. Ninguém esperava que os outros terminassem o que tinham para dizer. Era como se a cidade fosse composta por múltiplas pistas onde passavam vozes sobrepostas. A fala geral tornara-se gongórica. O ruído era a pior poluição.

Estes eram os termos gerais da depreciação do silêncio. Todos tinham uma palavra, uma palavra que fosse, para esbracejar em sua defesa, ou para arremessar contra o outro, ou para apenas não ficar refém do silêncio. Convencionara-se que a fala traduzia o exercício da liberdade. Não se previu que o exagero da fala a banaliza, corrompe a liberdade.

As palavras eram terçadas como armas. Eram palavras beligerantes. Não acrescentavam património ao espaço que se queria enriquecido com as falas das pessoas. A confusão entre o direito sem repressão e a repressão dos direitos extinguiu a beleza das palavras. Também em relação a elas se cumpria uma função básica da natureza humana: o excesso rasga o valor da coisa correspondente.

No meio da cacofonia, ninguém conseguia descobrir os freios para tanto mercadejar de palavras insignificantes. Pois só se apuravam palavras irrelevantes, ininteligíveis, num mapa onde não era possível fazer um inventário de quem tinha posse na palavra. Este coloquial desejo não era embainhado, não tinha curadores. As pessoas temiam que a apologia do silêncio fosse apedrejado pelos que se apresentam como embaixadores das liberdades, os que não se cansam de apregoar o direito ao uso da palavra sem diferenças de estatuto, quaisquer que sejam. Os que escondem o verniz da utopia na mal disfarçada linhagem de igualitários.

Se ao menos houvesse quem prometesse o silêncio, sem o silêncio ser entendido como as algemas que se abatem sobre as pessoas. Oxalá as pessoas entendessem que o princípio geral do atropelamento da palavra dissolve a relevância das falas. Até acabarmos todos a falar para dentro de nós, numa repetida exaustão de frases ditas em circuito fechado. 

Se ao menos o silêncio fosse entendido pelo que ele é válido e não pelos lugares-comuns que os corruptores da palavra lhe atribuem. Se houvesse quem conseguisse convencer os gongóricos que a exaustão da palavra é a sua denegação. Podia ser que o silêncio fosse a melhor promessa eleitoral.

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