Não se diga que o que se escreve fica lacrado na babugem do tempo. Não se diga que são essas as palavras intemporais; o vento alisado pela efemeridade cuida do seu desmentido. As impressões digitais que são o periscópio da alma são conduzidas por uma ardósia visível. Que ninguém tenha a pretensão de colonizar a ardósia.
Dantes, o giz emoldurava a fragilidade. Era fácil apagar o que era dito ou escrito. Não ficavam vestígios para memória futura. As pessoas podiam ser destemperadas. Se houvesse matéria viva para controvérsia, as ondas de choque eram meãs – a palavra de um contra a palavra de outro, e todos nivelados pela igualdade de estatuto. Ninguém se perdia no nevoeiro crítico das palavras que podem ser resgatadas a qualquer momento, mesmo quando o seu autor já delas se esqueceu.
A ardósia extinguiu-se. Todos os escrutínios se exercem na exposição aos demais. Nada fica por decantar. E até as palavras mais simples se expõem às figuras de estilo acrescentadas pela liberdade hermenêutica de quem as lê, ou pela intencionalidade da tresleitura. Às vezes, é preciso adicionar um guia de leitura. A efemeridade foi liquidada nos saldos da modernidade. Nada sobra da espontaneidade que era possível quando a ardósia era a matéria-prima da escrita.
Os puristas continuam a usar a sua pessoal ardósia. Escrevem, reescrevem, eliminam palavras, passam um borrão pelo texto todo, usam-no como apêndice de outras circunstâncias. Os dedos não se cansam das arestas do giz: a ardósia é sua e só sua, o giz é património de quem tutela as palavras lacradas na sua transitoriedade. Em vez de pesadelos que adulteram o sono, por medo do futuro e do escrutínio à mercê de indisfarçados propósitos, tira-se partido da indulgência de saber que a ardósia não é refém da perenidade. Estes são os que ficam à porta do reconhecimento. Sobram como anónimos, ou como figuras inexistentes porque não se entregam à visibilidade pública.
Enquanto houver ardósia, não somos soldados sem nome que se caldeiam com a verosimilhança dos juízes de causas alheias. A ardósia não se compadece com a intrusão dos outros. É uma coutada, impermeável aos repentes dos outros. Quem domina as figuras de estilo na ardósia é quem dela tem o monopólio do uso. Os outros são apenas testemunhas, passivas.
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