1.11.22

Golpe baixo

Local Natives, “Just Before the Morning”, in https://www.youtube.com/watch?v=kHfLvdS6ra4

I

A tradução simultânea do medo é a centelha que adeja sobre a manhã. O fio fino tece-se entre as gotas de orvalho que resistem à ocupação do dia pela luz solar. Algures, a aranha escondida. À espera da presa certa.

II

Estas não eram as palavras iguais. As ondas do mar entravam pelo cais, no desenho do tempo sobressaltado, um presságio de tempestade. Desenhavam a enseada. Os reformados escrutinavam as investidas da maré e faziam o inventário provisório dos danos. Era este mar doloso que abria feridas no património das pessoas. Elas deviam saber. Nunca foram dali para fora. O risco não se desembaraça com a mesma ligeireza da vontade.

III

Os miúdos jogavam um qualquer jogo próprio da fase lúdica própria da meninice. Ao longe, um forasteiro descansava num banco do jardim, desfolhando vagarosamente as páginas de um livro escrito num idioma que nenhum passeante conseguia compreender (adivinhava o forasteiro, cidadão falante de uma língua exótica). Tomou a certeza como engodo do erro: já o sol anunciava a hora do almoço e uma mulher macilenta aproximou-se, balbuciando uma saudação naquele idioma. O homem convidou a patrícia para almoçar. Talvez precisasse de falar a língua que podia ter desaprendido, à mercê do êxodo para tão distante lugar.

IV

Depois de anotarem os resultados de um dia de comércio, pai e filho faziam a caixa. O dia fora razoável – razoável: algum pecúlio foi retirado da caixa, depois de calculado o quinhão deixado para as despesas fixas. Assim dá gosto o negócio – pensava, em silêncio, o pai. Passou uma nota das grandes ao filho e encorajou-o a ir jantar fora com a namorada. À hora do deitar, o jovem espreitou para o quarto do pai, para saber se ainda estava acordado. O pai lia um conto de maresia, marinheiros e sereias, com uma letra tão pequena que quase extinguia o olhar. Tirou uma garrafa do saco e ofereceu-a ao pai. Era um vinho que custara o dobro da nota grande que o pai oferecera ao filho.

V

Como se fosse em Istanbul, os gatos colonizavam certas partes das ruas. Eram gatos gordos. Vadios, mas gordos. Um ou outro, com sinais de conjuntivite – as pessoas eram generosas com os gatos no tratamento que dependia do alimento, mas negligentes nos cuidados de saúde. O velho e reformado marinheiro contava os gatos. Um ou outro roçava-se nas calças de bombazine do velho, à procura de conforto (estava frio). Ainda pensou adotar um gato. Naquela terra, os gatos precisam de liberdade, não do espartilho de um teto e de quatro paredes. Foi o que disse a si mesmo, para extinguir a ideia de adotar um gato.

VI

Os homens não são vis – era a convicção do idealista, sentado sobre o promontório de onde tirava as medidas do mundo. Estava com distância a mais para poder ser observador atento e rigoroso. Por isso, nunca abandonava o seu posto de observação.

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