21.11.22

O homem que lia o dicionário ao deitar e ao levantar

Nitin Sawhney, “Down the Road”, in https://www.youtube.com/watch?v=4NtHo3FYdXw

Não seriam as unções várias a arreliar o alpendre se o sol o visitasse. Era como o homem, proprietário da casa, solitário por militância, que encontrara a sua melhor companhia ao deitar e ao levantar: um dicionário. Abria-o ao acaso. A primeira palavra que não conhecesse era anotada num bloco de notas espartano guardado na gaveta. Depois prometia tecer uma teia em que participassem as palavras anotadas, um enredo em que fossem partes as palavras acabadas de anotar. À falta de melhores entretenimentos, este era o preferido do homem. Não o acusassem de ser inculto, ao menos (que da acusação de misantropia não se safava). A empreitada começava assim:

Catecúmeno: aquele que se prepara para receber o batismo.

E depois,

Eupatia: paciência, resignação.

Quem não se lembra dos bebés, ainda reféns da tenra idade, vítimas prediletas dos costumes religiosos, à espera dos santos banhos que dizem ser a caução para entrarem no reino de deus? E os bebés, pacientemente a serem jorrados com um feixe de água necessariamente benta, acolhidos no país divino, não sem, sorrateiramente ingratos, berrarem um choro convulsivo, para gáudio dos pais, da família e dos restantes entes queridos que eram testemunhas da cerimónia. Os catecúmenos têm de se predispor à eupatia, mesmo que não saibam ao que vão. Literal e eufemisticamente.

Ao que se seguiam,

Dendroclasta: pessoa que não respeita as árvores.

E

Prândio: refeição suculenta; banquete.

A proteção da natureza continua o seu messiânico caminho. Nele, diariamente são arregimentados mais seguidores. Pressentiu que o próximo alvo dos ambientalistas seria a cultura. Não toda a cultura; o feixe de ódio seria dirigido para a literatura. Começariam por acusar as editoras de só ambicionarem o lucro e de editarem incessantemente literatura cuja qualidade não compensa o sacrifício de árvores. Dando a mão aos apóstolos da extinção do capitalismo, parariam no apeadeiro da exprobração do capitalismo, acusando as editoras de querem o lucro em vez do mecenato de quem presta um serviço à humanidade. Constatando que não conseguiam convencer “o mercado” (o somatório de autores, editores e leitores) a abdicar do livro físico, passariam a dirigir a ira contra os livros. Se outros houve, em tempos, que condenaram livros à fogueira, os novos arautos da moralidade irrecusável lançariam o dedo acusador sobre autores, editores e leitores: do libelo constaria a acusação de serem os piores dendroclastas que a História da humanidade conheceu. Ato contínuo, depois de expropriarem livros de bibliotecas em barda, teriam a seus pés o prândio que os apaziguaria. Diriam que os livros banidos eram uma dádiva para a humanidade (sem darem conta de como estavam errados).

Para o dia restante, faltava colher 

Nédio: que reluz; luzidio; que tem pele gordurosa.

E

Onfaloscopia: rezar enquanto olha para o próprio umbigo.

E ainda

Errabundo: errante, vagabundo.

De outra cepa, putativos condutores de almas, ciosos das suas malabares elucubrações, assestavam o arsenal contra os errabundos que, de tão nédios, se dedicavam à onfaloscopia. Ao menos, oravam. Não era comos os hereges admitidos a concurso por deferência dos deuses de serviço, que negavam a existência destes e não participavam no movimento oratório universal. Desses se dizia serem nefelibatas que transitavam pelo excesso de hedonismo, desgraçando-se, sem saberem, por descuradoria dos deuses a concurso. Desses se dizia serem apenas errabundos, os piores de todos.

E antes que a cavalaria dos pesadelos montasse tenda, o homem fechou o dicionário. Não fossem os vultos receber ordem de soltura e lhes fosse encomendado o desassossego do sono que queria plácido.

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