A quem aproveita o medo? Por mais que se arrematem as virtudes que esconjuram o medo, fica sempre a pairar a sua possibilidade. Mas não devemos nada ao medo. As mãos aguentam todo o suor que nelas desagua, dizendo-se que o suor é outra vítima do medo. Antes o suor do que nós. Antes a safra demorada no púlpito da perseverança, desinstalando os espasmos que nos deixam à mercê do medo. Se ao menos evocássemos o futuro desprendido, as manhãs que se cumprem na sua serenidade, os frutos pendidos sobre a boca, alimentando palavras quiméricas – se ao menos não fugíssemos de tudo isto, o medo era só a tradução da ilusão. A nós compete torná-lo uma ilusão; desfabricá-lo. Como se viesse com uns arremedos de noite e não se furtasse ao nosso escrutínio. Se não devemos nada ao medo, podemos ser nós a escoltá-lo. Não esperemos pela instalação do medo. Montamos a armadilha que proporciona a sua desinstalação – e ela acontece antes que o medo convoque para si um nome próprio. Sabemos onde está o abismo, o mapa já tratou de o cartografar. Se a lucidez não for omissa, não atravessamos o limiar da falésia. E corremos, de mar em mar, apanhando as palavras que esvoaçam, levadas pelo vento gentil, até sermos reitores do dicionário por que nos regemos. Em vez de a inércia nos deixar prostrados, e nessa prostração sermos presas fáceis para o estigma do medo. Cumprimo-nos. Não seremos ideais, que nem sequer acreditamos em ideais. A impressão da imperfeição não colhe armas no (nosso) rosto da fragilidade. Não é um medo que se tenha. Afundamos o medo até que não seja mosto para uma colheita vindoura. E proibimos os submarinos. É nesta Primavera dileta que inscrevemos os nossos nomes. Não há desinstalação que se compare.
4.11.22
Desinstalação (short stories #411)
Nick Cave, “Red Right Hand” (live in Dublin), in https://www.youtube.com/watch?v=6Paj0eZumYc
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