As cartas estavam espalhadas – era um baralho estilhaçado. Se as pessoas soubessem do sol luminoso que contrariou os dias anteriores de chuva, deixariam os seus refúgios, sentiriam a rua hasteada pelo sol. Continuavam dobradas sobre o seu dorso, escondendo-se das demais dores. Hibernavam, ainda. Não era esta cidadania que os compêndios regiam. Antes que fosse tardio, o dia colhia-se na sua efemeridade. Uns mecenas irradiavam a cortesia própria de quem não recusa um sorriso ao dia consecutivo. Queriam ser uma centelha, mas não um exemplo. Se os outros acabassem corrompidos por um luar inesperado, acusariam a solidão da culpa íntegra. Mas ninguém podia garantir que o luar ocorresse; ninguém acautelava as cinzas esporádicas que esvoaçassem por ação do vento torrencial. Aos outros só se podia deixar as suas ações, não as intenções. As intenções seriam nulas. Se fossem arrematadas aos mercados ancestrais, as sementes da memória espalhar-se-iam pelos campos assim tornados férteis. Não era a solidão das pessoas que demovia as intenções. Antes a água tumultuosa da maré-viva do que um rio mortiço arrastando-se preguiçosamente para a foz. Os candelabros das salas vistosas ateavam a luz precisa. As pessoas precisam de um sinal para não darem parte ao medo. Precisam de manhã para saberem do paradeiro. Sem que as lojas urdidas concebam os vultos que semeiam os pesadelos. Há um oráculo algures que desata os bordões a que se agarra o sangue que resolveu as suas convulsões. Um úbere que dá de beber aos insaciáveis embaixadores da vida. Se os curadores de esperança viessem na dobra das páginas sucessivas, não haveria o entardecer que desfalece no ventre da noite. Os cometas que deixaram tatuagens lacradas na pele não seriam chamados ao pelourinho da desmemória. A colheita não é dessa linhagem. Não espera que o dia consecutivo ocupe o seu lugar. Ele vem no seu regaço.
17.11.22
A colheita só (short stories #413)
God Is An Astronaut, “When Everything Dies” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=rest_s-0UdI
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