14.11.22

Páginas amarelas

The Blaze, Dreamer”, in https://www.youtube.com/watch?v=G6K_hkVdQgw

Um forte, sozinho no meio da maré que espera a subida. As aves consultam os ventos. Esperam pelos ventos que sejam a favor, só depois é que armam o voo. Esperam com a paciência genética, amparadas nas ameias do forte enquanto os mariscadores afocinham no lodo que ficou da maré-baixa.

Os poetas não deixaram páginas atravessadas na letargia que se insinua na paisagem. A ermida escondida entre os vales do rio serviu de esconderijo contra as tempestades. Terá sido o salvo-conduto de inúmeras vidas que seriam presas fáceis do tempo tumultuoso. Os poetas ignoram a generosidade da ermida. Preferem extasiar-se com a indolência que os transporta por um palco lisérgico. Os prazeres mundanos servem de matéria-prima para a poesia. Que ninguém maldiga o hedonismo praticado pelos poetas.

As mulheres dos mariscadores estão de atalaia. Neste pedaço da costa francesa, as marés desaparecem num ápice, mas regressam sem pré-aviso. Não se pode confiar nos marégrafos de serviço. As mulheres previnem o cerco dos mariscadores pela maré que não quer ser subalterna. As mulheres querem tanto o sustento da família como a segurança dos maridos. Não necessariamente por esta ordem.

Se em vez da maré for uma tempestade a descompor o horizonte, as mulheres guiam-se pelas aves que esperam um sinal. Mal as aves esbracejam o voo, as mulheres sabem que o vento sopra para o lado que é a viagem das aves. Se as nuvens se congeminarem iracundas a caminho dos maridos, ciciam um silvo. Os pássaros não funcionam nesta frequência modulada. Os maridos, sim.

Se um poeta de passagem não estiver em hibernação forçada por ação do hedonismo prático, irá parar diante da tela que o largo estuário oferece. Ao longe, do tamanho de pequenos insetos, os mariscadores que esgravatam o lodo para retirarem crustáceos pagos a preço de ouro. Na margem, onde a areia não atingida pela maré cheia se funde com o paredão, as mulheres com medo da viuvez (ou, dir-se-ia, ciosas dos réditos da família) inspecionam o horizonte. Procuram marés e tempestades que possam apressar a viuvez. Os poetas saberiam ilustrar, com o poder heurístico das estrofes, que as mulheres ficam viúvas antes de os consortes terem esse direito. 

Os poetas servem-se de páginas amarelas, retiradas a almanaques antigos que inventariam os números de telefones dos assinantes, para lacrar os poemas vividos. Dirão, se sobre o assunto forem perguntados, que amarelo é o sorriso das mulheres que têm a viuvez prometida. Não entendem por que ficam de vigília aos maridos, se são impotentes quando as circunstâncias se jogam contra eles.

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