5.7.24

O teu mal é sono

Gift, “Later”, in https://www.youtube.com/watch?v=beGL5_7WP2c

Não dizias a bota com a perdigota – sem saberes, ao certo, o que a expressão idiomática queria dizer. Ouvias-te, se é que possível a abstração entre os sentidos, e temias que já não fizesses sentido. Era o sentido que deixava de rimar com os sentidos. Como se fosses um súbito embaixador do surrealismo, numa versão recauchutada.

Ao certo: as moedas na algibeira e uma meia rota (a direita). Os sapatos puídos e a limonada que serviram na esplanada e sabia a mofo. Talvez os limões estivessem fora de validade e escondessem umas vírgulas de bolor. Adivinhaste umas cólicas e, talvez, uma convulsão gástrica que levaria de emergência a uma casa de banho. Talvez esconjurasses as ideias pesadamente órfãs que te assaltavam. Era melhor não pensares no assunto e enganares o estômago com uma bebida qualquer que fosse pior veneno. Lá veio um gin tónico suplementado por um toque de tequila.

Regressaste aos pensamentos pretórios. De manhã, quando entraste no metro, estava uma rapariga a tocar guitarra, com o chapéu jazendo no chão a servir de mealheiro à generosidade de quem passava e não estivesse absorto com os múltiplos afazeres que a agenda mental inaugurava para o dia nascente. A rapariga era nova e calva. Ficaste sem saber se a calvície era estética ou se era consequência de doença. Como a interrogação só te ocorreu quanto o metro cavalgava os carris, e como não tiveste o incómodo de sair da carruagem, atravessar para o outro cais, apanhar outro metro e sair na estação de origem, ficaste sem saber. Não era por falta de tempo. A tua demorada condição de desempregado não deixa que te refugies na ladainha das pessoas eternamente afadigadas. Não te podias abraçar à falta de tempo.

Ao anoitecer, deitaste o olhar para trás. Um exercício habitualmente inútil, esse de inventariar o apanhado do dia. Tirando a rapariga calva que tocava um hit da música pop dos anos noventa – talvez isso explicasse a indiferença dos mais novos –, não vinha nenhuma memória ao espelho do tempo que estendias diante do olhar. Devias andar distraído, ou imerso em profundos e, todavia, estéreis pensamentos que te distraíram do ecossistema à volta. Nem te lembravas do jantar (ou, tão distraído, nem te lembraste de jantar?).

Antes que viesse o sono, não querias a anestesia da televisão. Pegaste num livro ao acaso, entre o rol empilhado na mesinha de cabeceira. Era sobre ecologia. Compraste-o há quase dois anos (de acordo com a data de compra que lacras na contracapa, para memória futura). Um dia sentiste a pulsão do rejuvenescimento, ou de apenas atualizares os conhecimentos com o conhecimento moderno, e compraste o livro. Nunca passaste do prefácio. Dava-te sempre o sono quando ias voltar ao livro.

Como andavas refém da insónia, caíste resolutamente no livro que explicava os fundamentos da ecologia moderna. Podia ser que o sono se libertasse das algemas. E que o livro tivesse, afinal, serventia. Para não voltares a ouvir alguns dos mais próximos, em tom de reprovação, a advertir: “o teu mal é sono”. 

4.7.24

O pesadelo perfeito (e se a França fosse aqui?)

The Cure, “Other Voices”, in https://www.youtube.com/watch?v=iu5kL4gX358

Apetece imaginar o que teríamos entre mãos caso houvesse uma segunda volta das eleições legislativas e só pudéssemos escolher entre duas coligações de radicais. Esta hipótese até pode não motivar a perplexidade de muitos leitore(a)s, aquele(a)s que não têm problema em escolher o mal menor entre duas coligações de partidos extremistas. Para ele(a)s, não se colocam dúvidas entre escolher protofascistas e uma miscelânea de esquerdas radicais e, algumas delas, com duvidosa linhagem democrática. No meu caso, que me encontro nos “degenerados” que alinham pela teoria da equivalência entre a extrema-direita e a extrema-esquerda, a hipótese leva-me a um pesadelo dantesco.

Se esse pesadelo se materializasse, seríamos obrigados a escolher entre uma coligação liderada por Rita Matias e outra liderada por Mariana Mortágua. A coligação à direita reunindo partidos que foram fazendo concessões ao Chega e personagens que se radicalizaram com a radicalização em curso. Personagens que se aproximaram da extrema-direita, reagindo ao extremar das hostes contrárias – à semelhança de um argumentário que fundeou legitimidade na geringonça para defender que os partidos do centro-direita não deviam estabelecer linhas vermelhas em relação ao partido de Rita Matias. Reduzindo o PSD e a IL a mínimos impensáveis, deixando nas mãos da coligação liderada pelo Chega a alternativa à coligação das várias esquerdas.

Às esquerdas, um processo idêntico, inspirado na geringonça. Sob pretexto da engorda da extrema-direita e das demais direitas cerrarem fileiras à volta de Matias, para até a esquerda moderada (o PS de Alexandra Leitão) se situar numa latitude nunca dantes vista. Toda uma retórica e um programa de governo ditados pelos radicais à esquerda, aos quais os mais radicais dentro de PS (tendo tomado conta do partido) fizeram concessões. Com o silêncio taticamente comprometido do PCP de Alma Rivera e o frenesim moralista e folclórico do BE e do Livre, mais a boleia que o PAN teve de apanhar. 

Este seria o cenário mais ou menos decalcado do cenário com que os eleitores franceses se confrontam na segunda volta das eleições legislativas, a 6 de julho. Se este cenário se reproduzisse em Portugal, qual seria o lugar para os eleitores moderados, situados num amplo espectro entre as duas coligações extremistas a concurso? Do que vou lendo nos jornais franceses, os políticos do centro, personificados na derrotada coligação ligada a Macron, não parecem hesitantes: seu será o voto na Frente Popular. Como se estivessem ameaçados por um espada que os encostou à parede, desafiados a tomar uma decisão que os leve a escolher uma das coligações radicalizadas, os políticos do centro sinalizam aos seus eleitores uma escolha: o seu voto deve impedir os protofascistas de tomarem conta do governo.

É um voto pela negativa. Não é a escolha da Frente Popular, é entregar o voto a esta coligação para impedir que os protofascistas sob tutela de Marine Le Pen tomem o poder com o beneplácito da democracia. Votar para impedir alguém de chegar, ou de continuar, no poder faz parte da História e da ontologia da democracia. Quem não se lembra do famoso sapo que Cunhal engoliu (e mandou engolir aos fieis militantes do partido) quando Freitas do Amaral e Mário Soares disputaram a segunda volta das eleições presidenciais de 1986? 

Voltando ao exercício especulativo à escala nacional (ou seja, ao meu  pesadelo): o(a) leitor(a) moderado(a), que não teria votado na coligação de direitas liderada pela radical Matias nem na coligação das esquerdas que deslocou o compasso muito para a esquerda, como votaria na segunda volta se o sistema eleitoral fosse igual ao francês? Apenas posso responder por mim. E regresso ao cenário do pior dos pesadelos: primeiro, não tenho por hábito ausentar-me das eleições; segundo, nunca dei para o peditório do voto útil; terceiro – e para ampliar a dramatização do exercício especulativo, somando os dois primeiros aspetos – o(a) leitor(a) seria levado(a) à conclusão que eu teria de escolher entre uma das opções a concurso. Dito de uma forma que me agride as meninges: era votar na coligação Matias ou na coligação Mortágua.

Para o(a) leitor(a) entender este dilema que daria palco a um pesadelo colossal, não se esqueça que parto de um pressuposto que nem todos aceitam: um pesadelo dentro de um pesadelo é imaginar que o governo aterrou no colo da extrema-direita ou da extrema-esquerda. É a teoria da equivalência dos males que faz parte dos meus pressupostos políticos. Resgato um episódio ocorrido nas ruas de muitas cidades francesas na própria noite das eleições, após a divulgação dos resultados: muitos extremistas e, imagino, assim não tão extremistas vieram para a rua protestar contra a vitória da extrema-direita. Causa-me tanto medo a hipótese de a extrema-direita governar como a extrema-esquerda ostentar os seus pergaminhos antidemocráticos quando sai à rua para protestar contra uma vitória eleitoral selada pela maioria dos votos dos eleitores. 

É perante este quadro que reproduzo o cenário para Portugal e sou assaltado por um pesadelo aterrador. Não querendo prescindir do voto, e supondo que o voto em branco não seria alternativa viável, era como se dois punhais adejassem sobre as carótidas opostas. Cada um deles prestes a ferrar fundo numa das carótidas assim que a minha opção recaísse no outro concorrente às eleições. Porque, ao contrário de alguns bem-pensantes, a extrema-direita mete-me tanto medo como a extrema-esquerda. Sei que nem votaria na extrema-direita para impedir a chegada ao poder da coligação das esquerdas, nem votaria nesta coligação com medo da ascensão ao poder dos protofascistas e seus aliados. Para não ser cúmplice de dois cenários aterradores.

Se o(a) leitor(a) for moderado e perfilhar esta angústia onírica, então inclua nas suas orações (caso não seja ateu/ateia) o desejo de não irmos a caminho de tanta polarização como em França. Porque os radicalismos radicam na polarização e alimentam ainda mais radicalismo e polarização. Talvez um regresso às lições da História – e da História recente – seja mais do que apenas pedagógica. De outro modo, o(a) leitor(a) já pensou que sapo ia engolir se estivesse assoberbado pelo mesmo pesadelo?

3.7.24

A sedução não é isso

Desert Sessions ft. Josh Homme and PJ Harvey, “Crawl Home”, in https://www.youtube.com/watch?v=pab8gea5YWY

Numa música de Sam the Kid, está enxertada uma frase nostálgica sobre a sedução, dita por Vítor Espadinha: “quando eu era mais novo havia uma coisa muito bonita que era a sedução.” O músico veterano parecer lamentar como a sedução foi exaurida pela modernidade. O artista convoca um romantismo que se perdeu pelo caminho do tempo a favor (ou, diria ele, em desfavor) de um pragmatismo que rima com a despersonalização do amor.

No tempo em que Espadinha se tornou perito na sedução, a sedução era um jogo de palavras e de gestos. A assimetria na interação fazia parte do código de conduta: o homem era o sujeito ativo da sedução, à mulher estava reservado o papel da seduzida. No jogo da sedução, ao homem era permitida uma semântica que veio a ser banida décadas depois. Não foi a única razão que ditou a ostracização da sedução. Também concorreu a alteração de hábitos. Seduzir alguém passou a ter um novo código, impessoal e trespassado pela igualdade: na sedução atualizada à modernidade (a sedução homeopática ou descafeinada – ou a sedução em vias de extinção), não só a mulher pode seduzir como essa sedução rompeu as baias da heterossexualidade.

Hoje a sedução é um jogo arriscado para quem a quiser praticar. Não se considera sedução o piropo boçal que cuida de arrematar a(o) seduzida(o) como se fosse um mero objeto ao serviço da(o) sedutor(a). A linguagem de taberna não quadra com a sedução, que nos seus tempos áureos era sofisticada, era um jogo de palavras e de atos que não era entendido como a perseguição da destinatária da sedução. Os sedutores eram requintados, punham a boçalidade fora do perímetro de segurança. Outrora, as seduzidas ainda não tinham sido sensibilizadas para a distinção entre sedução genuína e uma procissão de arrotos sentados sobre o pedestal da posição soberana do homem e da subordinação irremediável da mulher, a que não se pode chamar sedução.

O tempo, e a diligência dos homens e das mulheres (a ordem é arbitrária), foi corrigindo essas anomalias. A sedução foi sacrificada. A fronteira entre o que é sedução e assédio inclinou-se a favor do reconhecimento de casos de assédio. Os sedutores à la Espadinha teriam a vida difícil se continuassem a ser sedutores como aprenderam a ser no seu tempo. Grande parte da retórica de sedução seria hoje entendida como uma manifestação de assédio. 

Não tenho a certeza que isso seja necessariamente um progresso.

2.7.24

Revogar

Hania Rani, “Teenen”, in https://www.youtube.com/watch?v=b5460Oggjnw

As teimas tiram-se no oráculo onde o olvido se cumpre. É uma vingança, mas sem o perjúrio das vinganças. Uma assinatura indissipável, atropelando os contratempos herdados em sucessivas camadas da memória. 

A escultura parece inacabada. Vista de fora, ninguém diria. Um olhar criterioso desafia a convicção. A impressão de imperfeição adeja sobre a escultura, como se uma voz paternal garantisse a renovação dos tempos e tudo acabasse por ser uma meticulosa repetição do havido. 

Mas há espíritos insatisfeitos. Espíritos que não transigem com o contrabando dos sentidos orquestrado nos veios tentaculares que se movem por dentro de um labirinto ermo. Escolhem a rutura. Encenam palcos originais, uma mistura de cores nunca experimentada. Travam o avanço da monotonia que pertence ao exercício repetitivo dos que temem a mudança de alguma coisa. 

São os procuradores da revogação. Exigentes com a coreografia dos tempos, vestem-nos do avesso e não têm medo de serem olhados com desconfiança como párias que ambicionam o desestabelecimento de muitas coisas. Ao contrário dos inquilinos do estabelecido, não se assustam com a incerteza. Sublevam-se contra o presente desqualificado que condena as pessoas a viverem abaixo das suas possibilidades. 

Por isso, decretam unilateralmente a revogação de tudo o que seja espelho da decadência, mesmo que não saibam do verbo titulado pelo amanhã, mesmo que uma penumbra assustadora desmotive os espíritos comprometidos com a denúncia da decadência. Revogam, sem terem uma ideia do que vem substituir o revogado. Querem ficar lembrados, em memória futura, com os que não se intimidaram com a penumbra da aventura e condenaram a mediocridade à extinção. 

Depois, trazem às costas, em sacadas desarranjadas, a ossatura do que teve alcance pretérito. Vão a caminho de uma entulheira. Nem para memória museológica servem, esses destroços. Quando regressarem, vêm-nos dizer que a empreitada teve recompensa. Terão o cuidado de não negar a validade do passado. Mas dirão, enfáticos, que a revogação por si selada será a fiança do futuro, para dele não termos medo.

1.7.24

Meia hora

Nils Frahm, “Re”, in https://www.youtube.com/watch?v=ScUP6MKmXpg  

Do que seriam os vândalos que leem as horas nos oráculos desembaciados? 

As farsas nunca andam nuas. Pertencem à matéria escondida. São como voos noturnos que escapam à sindicância dos radares, desenhando os desníveis do terreno, armadilhando os poetas desprevenidos. Digam que os inocentes são a carne mais fácil para canhão; mas é preciso adivinhar a descompostura dos canhões e a carne que se presta a ser violentada. O coração suspende a marcha, fica à espera que o tempo o vitamine em convulsões várias. Assim acontece com os corações hibernados: precisam de um estímulo elétrico para voltarem à vida.

Os povoadores da esperança não capitulam. Deles é o copo meio cheio, apesar de estar meio vazio. Perseveram como um rio que a esforço dita a erosão da rocha até então impermeável, sulcando o seu leito nativo. Se os vasos capilares não fossem compostos de sangue, o futuro podia ser colonizado pelos estultos que odeiam a pureza das lentes que procuram decantar a matéria viva. Que procuram evitar que ela sofra a metamorfose venal e se ofereça à morte. Os povoadores da esperança sabem que há uma fronteira que passaporte algum consegue franquear. 

A ambição limita-se àquela meia hora que se multiplica por décadas. A meia hora que condensa os miligramas que se transformam em tonelagem industrial, uma metáfora corrosiva que desfaz os escombros que se prometem para o tempo fortuito. Meia hora, uma meia hora apenas que se eterniza no lustre que se esconde em todos os museus. Em vez de vozes, um silêncio que as desterra. A pureza das intenções – que muitas vezes somos feitos de intenções e com isso contentamos um devir legitimado. 

A luz imita uma aurora boreal, diante do encantamento dos boémios que ficaram acordados até cedo (já a madrugada sussurrava o seu respirar). Enche-se o seu peito com a maresia que se enxerta na coreografia de luzes. Chamam-lhe nomes, por tentativa e erro. Festejam a embriaguez de cores que desfaz os vultos que tinham açambarcado a noite. Sua passa a ser uma despresença, enquanto os celebrantes hasteiam uma bandeira acabada de inventar. Não deram conta da meia hora. Chegou-lhes uma meia hora, para serem inteiros.