Ecoam as folhas caídas das árvores, e não é outono. Os pássaros dormem à espera da próxima nortada. Escondem-se do luar. Como os Homens, ocupam um lugar térreo. Talvez quisessem trocar de lugar e oferecessem a hipótese do céu para o Homem saber o que é voar sem ser de avião.
2
Ao longe, a aldeia com telhados de xisto escorrega pela encosta. Um sortilégio para o olhar distante que a contempla. Duas ou três nuvens errantes colonizam a paisagem com um ar marmóreo. As diferentes luzes entrecortadas espelham-se no casario desordenado. Este é o domínio do silêncio. Mesmo quando o olhar se aproxima da aldeia, é um lugar ermo para pessoas.
3
O menino pede um gelado à mãe. Não está calor, responde a mãe, convencida que o pretexto é mais convincente do que dizer faz-te mal aos dentes. O rapaz insiste até a ser autor de uma birra que se abraça a um pranto pontuado pela estridência dos gritos. As pessoas à volta viram o olhar para o berreiro. A mãe anui, antes que seja tarde. A birra do petiz fez mudar de ideias. Nos tempos que correm, os mal-entendidos depressa medeiam a reprovação social sem sequer se indagar se houve culpa. Assim como assim, no mês que vem o rapaz vai ao dentista.
4
A manhã arrastada pelo nevoeiro acasmurrado está quase a invadir o domínio da tarde. Parece um dia de letargia geral. Até os apressados condutores de motociclos que fazem entregas de comida ao domicílio cumprem o código da estrada. As peixeiras ficaram afónicas (ou o peixe não veio às redes). Uma estrela de rock disfarça a noite pouco dormida sob os óculos de sol que nem assim escondem as olheiras. Até o legislador nacional arrefeceu a atividade legiferante. Estavam reunidas as condições para o país não se atrasar.
5
O cão perdido afocinha no lixo à procura de comida. A trela está gasta e o pelo maltratado. Agarra um pedaço de carne que extraiu de um recipiente de alumínio que pertenceu a uma recolha em forma de take away. Os olhos desconfiados do cão motivam um esconderijo urgente. Não confia em ninguém – humanos ou canídeos outros – quando é para assegurar a sobrevivência. Ainda dizem que os cães são animais irracionais.
6
Um casal de pregadores da fé anda de porta em porta a angariar operários. São mais as portas que não se abrem – a hora é de trabalho e, para bem da economia nacional, a maior dos lares é de gente que não está no desemprego. A uma porta que se abre, o pregador de patente mais elevada, sob o olhar diligente da jovem talvez ainda em tirocínio, perora com eloquência contra a promiscuidade, o hedonismo e a capitulação aos instintos carnais. Por mais que uma vez o embaixador da fé espuma o verbo fornicar como se fosse o pior dos pecados. E ele, a roer uma fatia de pizza ressequida, não sabia bem por que ainda não tinha terminado o monólogo cristão se tinha uma amiga à espera no quarto. Antes que fosse tarde, esperou (educadamente) que a boca não estivesse ocupada a mastigar a fatia da pizza, para (educadamente) comunicar que não estava interessado na prédica. Como a prática seguinte cuidaria de provar.
Era o trinta e sete ou o trinta e cinco que apanhávamos quando queríamos ir à Baixa. O trinta e sete era melhor: cortava caminho sem descer ao Fluvial e subir as Condominhas, como acontecia com o trinta e cinco. Era uma diferença de quase dez minutos. Preferíamos o trinta e cinco. Descia ao Fluvial e víamos o Douro que aí recebia as águas até então subterrâneas do Ouro, seu afluente (um dos últimos afluentes antes do Douro se tornar afluente do Atlântico).
Depois subia a rua empedrada e irregular a caminho de Lordelo. Nas paragens recebia velhinhas reformadas que iam ao mercado, outras à consulta no Centro de Saúde, velhos reformados que possivelmente iam a caminho da tasca para as jogatanas com os amigos e uns copos de três até a vista ficar embaciada e dizerem coisas entontecidas, um ou outro drogado que acordara antes de tempo (mas tarde, se as outras pessoas fossem usadas como comparação).
As velhinhas metiam conversa umas com as outras. As que se conheciam por serem vizinhas e as que se conheciam de outras viagens no trinta e cinco. E as que nunca tinham falado umas como as outras, que depressa passavam a ser confrades a propósito disto-e-daquilo que viesse a talho de foice e destravasse a língua. Falavam dos filhos, dos netos, das apoquentações de serem mães e avós. As que não falavam dos maridos eram ser as viúvas, identificadas à distância por não se desprenderem do luto perene que era o vestuário imperativo. As que falavam dos maridos não usavam palavras boas: o casamento era uma maratona sacrificial e a imagem do amor parecia desfocada pela distância do tempo em que houvera um módico de paixão. O marido, se não era a pior pessoa do mundo, andava lá perto.
Os velhos iam sempre em silêncio. Quando entravam no autocarro estudavam meticulosamente a ocupação. Escolhiam lugares que não fossem próximos das comadres que tagarelavam ruidosamente e com proficiência. Não escondiam o ar de enfado quando mais velhas entravam no autocarro umas paragens à frente e se sentavam próximo deles. Não escondiam o enfado, com indisfarçáveis esgares de desprazer, quando a conversa ia dar aos maridos inúteis, os maridos embaraços, com quem partilhavam a vida. Tínhamos a impressão que, de tão contrariados, os velhos eram obrigados a incinerar as mágoas na tasca, animados pela solidariedade de casta que era ativada assim que um deles reproduzia a conversa ouvida no autocarro anterior.
E nós, observadores atentos, percebíamos que o mundo fora do ecossistema dos velhinhos e das velhinhas do trinta e cinco era idílico. Por isso, preferíamos o trinta e cinco. O trinta e sete era mais burguês. Mais silencioso. Não podíamos confirmar que fora do trinta e sete as coisas não andavam piores.
O trinta e cinco podia ter sido o tirocínio para o otimismo antropológico. Desde que a amostra que povoava o trinta e cinco fosse entendida como exceção.
Parto do prato, vazio. Números e letras escoltam o olhar fechado, escuro. Dizem o que dizem e não me importo com a estirpe cantante das vozes errantes, das vozes que açambarcam um módico do tempo que me pertence. Sou essa estátua preliminar que voa no perímetro do horizonte. As bocas famintas passeiam pela berma do dia, não são suas as vozes intempestivas que misturam palavras num amontado que tortura as frases.
Sou, gente-gente, orgulhosamente abraçado ao paço da indiferença, que todos temos nome, mas poucos o sabem. Poucos agarram a popularidade por tantos desejada, para sua própria profilaxia. (Se fossem o que não são, seriam delatores do anonimato violentamente obstruído.) As mangas escondem os braços transidos pela hibernação a que nos querem condenar. Como se a indiferença fosse estendida à ambição dos mandantes de nos atirarem para um lugar lúgubre onde as imunidades são despromovidas em nome do “bem maior”. Somos gente-gente, não apenas um número de contribuinte e outro de cidadão.
Se não estivesse puído o cais onde nos fazem esperar, não teríamos uma venda nos olhos, a boca dentro de uma armadura de espinhos, a língua proibida de se mover para não ser devorada por formigas atiçadas desde um ninho oculto. Seríamos, na antítese do que querem que sejamos, vozes poéticas entoadas no miradouro onde o luar fica à distância da mão, recusando a contrafação que dissipa a nossa maneira de ser eu. Queremos que os dias combinem com as rugas em que se transformou o rosto, para que os mais novos comecem a saber o significado de efémero.
As páginas que atapetam o chão estão povoadas por poemas avulsos. Dir-se-ia ser um sonho, que o chão não é compatível com a poesia (ou vice-versa). Apetece-nos que essa rua pedonal seja um enclave, retirada à soberania do demais. Um lugar reservado, onde mandantes e as regras ciclópicas que aprovam não têm direito de admissão. E nós, déspotas a favor da liberdade, poetas que transitam entre o verso e a prosa, apessoados pela nossa consciência (apenas), marinheiros que tratam os mares por tu, gente-gente de olhares feitos de carne, mecenas da vontade sem peias, combinamos os dias vindouros pelo acaso em que se esgrimem.
Cultivamos esta maneira esguia de sermos próximos sem sermos afins, porque as fronteiras são artifícios arcaicos que se esgotam na maresia que todos conseguimos haurir.
A música habitualmente acompanha as empreitadas em que mergulho. Quase sempre como som de fundo, porque às vezes o silêncio entorta a concentração que o trabalho exige. A música ajuda a levitar o pensamento, mas não dou atenção à letra que a acompanha para não me distrair da concentração que o trabalho precisa.
A meio de uma tarefa, a concentração sofre um intervalo e só consigo perceber esta estrofe: “livable life”. A música é cantada por Dylan Cox (“Animals in the Kitchen”). A estrofe ficou a pesar no pensamento nos momentos a seguir, e nos outros depois desses, como se a atenção tivesse sido intencionalmente interrompida para o pensamento se deitar à estrofe e às palavras nela contidas.
Se pactuasse com a moda da tradução literal – que criou uma elite de falsos especialistas em dois idiomas – dir-se-ia que “livable life” é uma vida que pode ser vivida. Não se desconsidere a hipótese de alguns peritos mais sofisticados arrematarem uma tradução ainda mais literal e bizarra, inventando uma palavra que o dicionário de português não conhece: “vivível”. A tradução correta remete para uma vida tolerável, suportável. Uma vida de mínimos. Que, todavia, pode ser de máximos, se as circunstâncias não apoiarem um cálculo por defeito e aceitarem que um mínimo se traduza no máximo que as possibilidades admitem naquele lugar e naquele tempo.
Uma vida suportável parece um anátema. A insatisfação esconde-se nas entrelinhas: uma vida que meramente se suporta anda longe de ser ideal. Mas o que é uma vida ideal? Onde está a fronteira do que pode ser considerado um ideal de vida? Quem pode responder a esta pergunta, mesma se ela disser respeito à sua própria vida?
Se somos tão diferentes, diferentes são os critérios para avaliar a vida que levamos e a medida que lhes aplicamos. Não é isso que interessa, a não ser reconhecer esta medida de subjetividade. O único critério que conta é de quem o aplica. Sendo impossível atestar que, objetivamente, alguém leva uma vida apenas tolerável, a lente que interessa é a subjetiva. E se alguém se lamenta que a sua vida é simplesmente suportável, fica a impressão que essa pessoa reconhece as limitações que tomam conta da sua vida. É uma vida cheia de fragilidades. Reconhecê-lo inverte o ónus: só quem tenha uma força oculta consegue admitir as limitações da sua vida sem disso fazer um lamento.
Uma vida suportável é um hino à perfeição possível.
Não esmorece o tédio quando a desaceleração ameaça o sangue com o torpor. Há quem não saiba não fazer nada. São adversários da preguiça, do nada fazer, porque em férias se espera que não haja compromissos, empreitadas, agitação herdada do tempo a elas prévio, horários a cumprir; em que se espera apenas que não se espere nada, a não ser a fruição de um tempo vagaroso que deve ter o seu compasso próprio.
Há quem deixe o relógio em casa quando está de férias. A astuciosa manobra está em vias de extinção, agora que somos dependentes dos telemóveis, pois os telemóveis mostram a hora quando o dedo desliza sobre a tela escura. Quem está preparado para deixar o telemóvel em casa, ficando incontactável nos dias seguintes? A pergunta deve ser feita desta forma: quem está preparado para sentir a amputação da ausência do telemóvel?
O telemóvel é o melhor candidato a ser um salva-vidas. Pode salvar vidas, quando um telefonema faz a diferença entre a civilização e um ermo, incontactável, lugar. Quem está dependente do tempo e se lamenta porque o tempo avança depressa de mais não entende que tem de abrandar antes que seja férias, ou que em férias devia ser interditado o acesso (nem que seja apenas mental) ao trabalho.
Logo a seguir, intervém o adepto das liberdades acima de tudo (e das pessoais ainda mais): o que cada um faz com o tempo e com as férias é da sua conta. Não revertem em desfavor dos outros os eternamente viciados em trabalho que o levam para férias. São de uma generosidade desarmante: o trabalho não costuma ser convidado para as férias por manifesta incompatibilidade. Os que o convocam para o período estival não bulem com o tempo livre dos outros que aproveitaram as férias para se livrarem do trabalho, com o encosto da lei. Nem estes precisam de invocar o salva-vidas das férias contra a intrusão do trabalho, nem aqueles adulteram as férias porque deixaram que o trabalho as invadisse, não sendo legítimo ditar para a ata que precisam de um salva-vidas que os salvem do trabalho sem intervalos.
Eles é que estabelecem os seus salvos-condutos. Não são os outros que decidem sobre os nossos salva-vidas.
De onde são as metáforas que se enxertam no mapa de que somos procuradores? Como nos chegam já em forma de matéria incontestável, como formulações fechadas à inquirição? São um dos anátemas do conservadorismo, ou apenas um código semântico que nos situa no ecossistema de que fazemos parte?
As metáforas têm a intenção de atirar para cima do entendimento uma capa de segundos e terceiros sentidos, às vezes até de sentidos ocultos que só a metáfora consegue desembaraçar. Podem ser uma armadilha para complicar o entendimento: se em vez de metáforas – um esconderijo de palavras que disfarça as que são o mote para a sua existência –, fôssemos confrontados com a literalidade do que nos querem dizer ou do que dizemos, não tínhamos de descodificar os segundos e terceiros sentidos, ou os sentidos ocultos.
Há a possibilidade que uma metáfora seja um jogo. Um jogo intencional: ao cobrir as palavras literais com uma metáfora que as disfarça, um desafio atira-se para cima de nós, os que somos convocados ao entendimento da metáfora. Não se creia apenas no ludismo das metáforas. Às vezes elas sobressaem como matéria titular que expande o significado das palavras. Estas enriquecem-se, ao significarem mais do que o seu sentido exato.
O ecossistema alarga os limites ao ser avivado pelas metáforas. Ao vocabulário emprestam-se novas geografias e as pessoas são colocadas diante de um repto: ou acompanham a prodigalidade semântica das metáforas, ou ficam para trás, acorrentadas ao sentido estreito em que se afunilam as palavras às quais seja recusada a possibilidade de uma metáfora.
O desafio não é isento de senãos. Se não for convergente o entendimento de uma metáfora capturado pelo sentir geral, haverá quem, desalinhado, atravessa um fio sobre um precipício, sempre à espera que o deslize no sufragar de uma metáfora corresponda ao passo em falso que o atira para a vertigem. São poucos os que se oferecem à empreitada de atravessar um desfiladeiro em cima de um fino fio de arame – poucos são os que têm vocação para o malabarismo. Os que não conviverem com o risco ficam para trás na constelação de metáforas que se entretece.
As metáforas só deixariam de ser um luxo se não empurrassem as pessoas para o fio do arame. Ou se perdessem em complexidade e ganhassem em entendimento geral. Só que, nessa altura, talvez deixassem de ser metáforas.
O estio é um inimigo. Ao contrário da maioria, que se desfaz em proclamações melancólicas quando o Verão atrasa o motor de arranque e o calor anda exilado, tenho como mau tempo aqueles dias exaustivos em que o mercúrio dos termómetros sobe dos trinta graus.
O que faz um exilado do Verão num dia de canícula? A resposta lugar-comum é demandar urgentemente a sombra. Ao contrário do que está vulgarizado no cancioneiro popular, estar na sombra não é semelhante a ir para o desterro. Diz-se: quem atua na sombra não é tributário da honestidade. Aqueles que são acometidos por sombras vivem sobressaltados com vultos que vêm do nada. Um dia sombrio não colhe a sobriedade da luz que irradia para que os sorrisos não sejam meros esgares. Ao contrário destas banalidades, uma sombra num dia carregado de calor pré-sahariano é providencial.
Outra resposta na ponta da língua é recordar que devemos beber mais quando o corpo é acossado pelo calor. As opiniões dividem-se quanto ao que beber. Os puristas aconselham água, a mais saudável das bebidas. Os tradicionalistas, muitos com pendor proto-marialva, recusam a água (e agarram-se a uma patética sentença: “água, só para lavar os pés” – o que é esclarecedor dos seus módicos hábitos de higiene). Estes atiram-se à cerveja ou ao vinho ou a bebidas brancas que vêm convenientemente disfarçadas em doses generosas de pedras de gelo, para gáudio dos donos dos bares (e dos respetivos proventos).
Urinamos para lá da medida, enquanto o que bebemos a mais atesta o disfarce do calor que entra em todos os poros, fazendo suar a pele. O coração acelera, o simples suar sem sair do sítio roça o desagradável, e até dentro das casas o calor sufocante entra por todos os poros. Crescem as saudades de países setentrionais (até quando nunca foram visitados).
Os exilados do Verão nem têm assim tanto para reportar no rosário das lamentações. Quem vive no litoral norte não é açambarcado pelo mesmo rigor estival que percorre longas temporadas em terras meridionais. Dentro de um país pequeno cabe um clima heterogéneo. Tenho pena pelos confrades dessas zonas, que são assaltados pelo mau tempo que atravessa o calendário estival. Devo olhar para a inveja que sentem de mim para não carregar na tecla do drama quando os acima de trinta graus continuam, por estas paragens, a ser a exceção à regra de um Verão temperado.
Repara a história contra o sobressalto das almas futuras. A contingência vem por conta das fábulas esgrimidas em meneios intransigentes. Não se herda apenas o passado; também somos obrigados a herdar o futuro, mesmo que sejamos os seus artífices.
Ou então, contempla a desobediência. Diverge. Pode ser impopular. Podes não ser sequer ouvido pelos que se situam na sua posição incontestável, do outro lado da trincheira. É do domínio da intolerância não se ter capacidade para escutar os que pensam diferente. Fá-los ouvir, mesmo que não queiram. Essa é uma violação da liberdade para a tua própria liberdade não ser violada pelos que apuram o sectarismo. Sem eles saberem, é um favor que lhes pagas.
Não precisas de apagar as pegadas do futuro. Deixa-lo fazer-se a si mesmo. A humanidade já devia ter aprendido que o voluntarismo se confunde com diligência e os resultados têm sido devastadores. Desconfia dos que acreditam que podem mudar o curso das coisas: o caudal que perseguem é insensível aos esforços dos outros, corre o seu curso e somos nós que apanhamos a sua maré. A cauda dos cometas é apenas um espelho distante em que ninguém se poder fitar. De tão ansiosas em saberem notícias do futuro, há muitas pessoas que o adulteram. O tempo não volta a ser o que queria ser.
Se teimarem num esteio à prova de imperfeições, desobedece. Situa-te como o primeiro dos imperfeitos e faz alarde disso. Não queiras pertencer a um lugar asfixiante em que tudo obedece a guiões milimetricamente concebidos. Não queiras que a tua linhagem seja a de alguém que finge as fragilidades e que se limita a cavalgar nas ameias da sua fortaleza. Sempre que alguém se aparentar com estes pergaminhos, desobedece. Desobedece como axioma, mesmo que, por dentro da matéria em ebulição, não encontres razão para a desobediência. Às vezes, a substância sacrifica-se à forma.
Mais tarde, recordarás a desobediência como um gesto heroico. Ninguém estará presente para o evocar. Tu serás tutor máximo de uma desobediência que sulcou os socalcos da liberdade sem concessões.
Sabes que as profecias sobre apocalipses, e os prognósticos viciados no passado que conferem o desencanto do mundo, estão errados quando descobres uma expressão idiomática sem fundamento. Sobretudo se essa expressão é a expressão do desânimo encartado.
Os usos e costumes admitiram a imagem do elefante branco como representação de uma empreitada exorbitante que ficou condenada a ser um destroço erguido a céu aberto. Exemplos dessa megalomania, sobretudo pública, não são poucos. Obras sem justificação devido à desproporção entre a sua grandeza e a pequenez do lugar onde foram edificadas. Ou por terem haurido recursos muito acima do estimado, sem uma justificação convincente para tamanho gasto. Atribuir-lhes a imagem do elefante branco é sinalizar a dimensão excessiva, como imenso é o corpo de um elefante. A cor imaginada do elefante é branca, para se perceber que a empreitada megalómana é uma miragem que o futuro veio desmentir.
Não se pode dizer que não há elefantes brancos na natureza. Os caminhos próprios da genética admitem elefantes albinos. O que se desmente é a sabedoria comum (ou um erudito a quem foi atribuída essa responsabilidade) que fez corresponder o elefante branco a uma obra exagerada e inacabada. Já os elefantes brancos, por muitos encarados como uma excentricidade por serem um desvio genético, ainda têm de arrostar a representação, como metáfora, dessas obras ciclópicas que são monumentos à inutilidade. O elefante branco não é inútil, como os outros, metafóricos, elefantes brancos são.
Devia correr outra petição (entre as muitas, nessa – assim vulgarmente considerada – embriaguez de democracia direta) para revogar a metáfora do elefante branco. E ainda que alguns mais dados aos misticismos e à fobia da magia negra possam encomendar ao elefante branco o cunho de uma raridade que amedronta, nem assim se percebe a teimosia em estabelecer a correspondência. Aos elefantes brancos devia ser retirada essa carga negativa, para que não sejam eles a arcar com uma responsabilidade que só pertence aos visionários que foram autores de tais obras indevidamente alcunhadas como elefantes brancos.
E assim ficaria reposto um capítulo inteiro a favor do otimismo, por substituição de um capítulo no rosário do pessimismo.
A desabituação da escrita manual provocou a decadência da caligrafia. Aqueles (como o acima assinado) que se habituaram ao teclado de um computador (ou de um telemóvel, ou de um tablet) esqueceram-se de como era a escrita tradicional – o sortilégio de uma caneta elegante, ou apenas o recurso a qualquer esferográfica indistinta, uma folha de papel e as tão diversas caligrafias, desde as que estavam capazes de vencer concursos de estética às que, de tão ininteligíveis, ficaram conhecidas como “letra de médico”.
À medida que a dependência do teclado faz o seu caminho, são dias e dias que passam sem que a mão direita (a esquerda, para os canhotos) empunhe uma caneta. Quando é exigível a caneta, porque uma tarefa não se harmoniza com um teclado (corrigir exames dos alunos universitários, por exemplo), o destreino causa um cansaço prematuro na mão tomada pela caneta. Acontece com a musculatura, ao passar da inércia para a atividade física aqueles músculos que estavam inativos dão de si e as dores chegam a ser lancinantes.
O pior é a decadência da caligrafia. A caligrafia (ainda) é uma marca distintiva da personalidade. Os peritos conseguem dizer muito sobre a pessoa ao examinarem a sua caligrafia. Mas a desabituação da caligrafia concebeu um efeito inesperado: quando se pega na caneta muito depois da vez anterior e se esboçam umas frases avulsas, a caligrafia não parece a do autor, como se as letras que acabaram de ser vertidas no papel não fossem o seu ADN. A caligrafia, que outrora era um traço distintivo da personalidade, deu lugar à homogeneidade que é ler um texto preparado nas teclas de um computador. E à falta de identificação com a caligrafia vertida em papel, quando a escrita manual tem de acontecer.
Seria a oportunidade para descer o chapéu do Velho do Restelo e lamentar a homogeneidade que se abate sobre nós ao ficarmos viciados em teclados. Mas seria um diagnóstico exagerado. Não é forma que nos distingue, pelo menos quando sondamos o lado que se esconde para além de um olhar superficial. O que nos continua a distinguir é o que escrevemos, não como escrevemos.
A decadência da caligrafia é apenas um sinal dos ventos que passam pelo tempo.
Há dias li que não foi Bulhão Pato que inventou as amêijoas cunhadas com o seu nome. Está em falta um meticuloso exercício de arqueologia gastronómica para descobrir quem inventou a receita e por que expropriou o nome de Bulhão Pato para a dar a conhecer. A paternidade é uma questão que não pode ficar presa nos detalhes. Façam-se os testes de ADN às amêijoas à bulhão pato – em jeito de (está na moda) petição pública.
Pelo mesmo andar, descobrir-se-á que o bife Wellington nada deve ao Marechal que, depois de atos de heroísmo em vários campos de batalha, chegou a primeiro-ministro de Inglaterra. À conta da História de Portugal, a Wellington devemos pesadas e significativas derrotas do exército francês que tinha invadido o país. Porventura, o bife Wellington faz parte do reconhecimento ao Marechal que ajudou a repelir os invasores e a preservar a soberania do reino.
Sendo a receita composta por um bife alto com um recheio de azeitonas moídas e pão ralado, aromatizado por vinho Madeira e envolvido numa cobertura de massa folhada antes de ser destinado ao forno, ao acepipe podia-se chamar “bife disfarçado”. O exercício arqueológico que se impõe deve procurar entender por que um bife assim fingido foi batizado com o nome de um herói de guerra estrangeiro. Se fosse nos dias em que estamos, dir-se-ia que o bife escondido numa armadura de massa folhada era uma homenagem aos serviços secretos (ou à “arte” do fingimento; só não se entendendo por que razão os espiões, por serem exatamente espiões, merecem uma homenagem).
Existe uma versão alternativa, já que se avançou em matéria de especulação: foi o apoio das tropas inglesas que ajudou o fraco exército lusitano a derrotar as tropas de Napoleão. Não fosse a diligência de Wellington e o território estaria à mercê das tropas invasoras, mais competentes e bem armadas. O país escondeu-se numa armadura. O que estava à mostra dos invasores era apenas uma cobertura gordurosa e, todavia, saborosa, escondendo a carne crucial.
(A carne é a metáfora para a alma da soberania nacional.)
Em antecipação ao exercício arqueológico da gastronomia, fica, para memória futura, uma tentativa de desenredar o enigma: os franceses limitaram-se a morder a massa folhada e já não tinham forças para chegar à carne. Foi um truque de ilusionismo para enfraquecer os invasores, iludidos com o disfarce oferecido. Com a bênção do Marechal Wellington.
Os verdes anos eram quando a pele aguentava a excentricidade e tudo combinava com os excessos que venciam as medidas. Verdes os anos, eles o seu próprio combustível que, desembainhado em perspetiva, então parecia total. A mecha sempre acesa, o sono como contratempo que impedia a fruição da vida, e uma procissão de destemperanças que não deixava a carne tatuada pelo medo augúrio.
Quando são verdes, os anos são uma matéria porosa que não se acrescenta ao tempo. Chamam pelos nomes apetecíveis, arrumam num álbum de memórias apenas as que não sobressaltam a memória futura. Oxigenam a paisagem por onde passam, como passageiros que descobrem o magma fundente que é o nutriente da exuberância. O tempo arruma-se numa linha fina, como se os anos verdes se estendessem ao longo da sua armadura e não fossem por ele consumidos. Como se percorressem uma praia mais extensa do que soma dos oceanos.
Um salto no tempo: os verdes anos ficaram emoldurados como imagem espartana do tempo decurso. Deixaram de ser verdes. São anos apressados que devoram o tempo, como se o emagrecessem contra a própria vontade. O acosso da nostalgia ergue muros que embaciam o olhar. O apelo do tempo enquistado, como se fosse requisitado ao passado para se reproduzir no presente, é um embaraço que afasta o futuro do miradouro. Os verdes anos perderam todo esse viço, agitados a destempo, como se fosse possível a sedição da vontade contra as algemas que a imobilizam.
A boca abate-se sobre os fantasmas congeminados pelos anos que deixaram de ser verdes. O dorso curvado não é convincente para emprestar outra cor aos anos que se libertam da escotilha e interditam o olhar. As cores baças colonizam a carne esgotada, preparando outro adjetivo para os anos que são servidos no bornal do tempo havido.
Falta saber que cor adeja sobre os anos outrora verdes quando eles atingem o seu avesso. Os entendidos nas convenções articuladas ficam em silêncio. Ninguém é capaz de articular a cor que é o avesso do verde. Não escondem que são anos trespassados pela decadência, um túnel fundo que, de tão fundo, se perde na imaterialidade das sombras.
A decadência não tem uma cor atribuída. Não há avesso dos anos verdes.
Os filhos da pátria podem estar descansados, o futuro não é sombrio: teremos uma geração de atletas de alta competição, pois uma larga maioria de estudantes é avaliada a Educação Física com dezanove ou vinte valores. Desmentidas ficam as teorias apocalípticas que tendem a provar que somos sedentários, com grande prejuízo para o serviço nacional de saúde e para a angústia dos entes queridos que frequentam as exéquias de familiares cuja vida foi seccionada pelo gume da doença.
As gerações que andam, ou andaram recentemente, na escola vão ser ao contrário. É gente que recusa o sedentarismo, tem porte atlético e um desempenho desportivo acima da média. Com tantos portentos físicos e na prática de variegados desportos, não só a média do porto atlético é pontapeada para níveis estratosféricos, como a pátria, tão envaidecida com proezas desportivas (para compensar outras fragilidades), fica com uma matéria-prima humana cheia de potencialidades desportivas.
Afiguram-se muitas medalhas nas olimpíadas e noutras competições internacionais e a proliferação de génios mundiais em várias modalidades desportivas. A pátria não tem memória de uma geração tão possante, de tantos serem os que cultivam o lema olímpico “citius, altius, fortius”. As poupanças futuras no serviço nacional de saúde, à conta de gerações que tão bem cuidam da sua saúde física, já podem começar a ser gastas por conta – por exemplo, para chegarmos aos 2% do PIB na tropa como foi prometido pelo primeiro-ministro, para gáudio de generais e dos capitalistas que alimentam a indústria da defesa.
(Ligando os dois assuntos: pode-se especular se tão diligente preparação de uma genealogia de atletas medalháveis será em vão: se os gastos em armas trouxerem a beligerância geral, alguns desses jovens nunca poderão provar as medalhas que teriam conquistado para a nação, desviados que serão para os campos de batalha e prematuramente, muitos deles, para cemitérios.)
Todavia, a teórica fabricação de atelas em barda não condiz com o observatório em que estamos. A maioria dos jovens tem propensão para a obesidade, talvez por se empenhar tanto nas delícias (de acordo com eles) do fast food. Como pode gente tão obesa ter uma atlética condição (demonstrada pelos sistemáticos dezanove e vinte valores com que são corridos a Educação Física), é algo que deve merecer o estudo atento de sociólogos, detetives e apuradores de verdades.
A ceia dos despojados começa. Cumpre-se a proibição dos lamentos. Não faltam almas espezinhadas pelo infortúnio, graças emagrecidas, rostos cavados pelas lágrimas que fundearam o seu caudal, colonizando a pele. Não faltam angústias sem freio, se a elas voltasse o errático divagar em forma de compensação.
As almas amesendadas cumprem a solidão. Juntam as solidões num disfarce arrematado, como se fosse preciso subir ao navio para fugir das encomendas dos lugares à volta, para fugir de pessoas. Entoam palavras em surdina, num murmúrio que evoca os cânticos crepusculares que emprestam um clamor que se arrasta pelas janelas onde se estendem corpos desassisados.
Desmentem propostas de ditadura, um enlevo mordaz que traduz a impostura, desaprovando as catenárias que convidam a fome insaciável entre os corpos prostrados. As faianças dão cor aos braços caídos. Nem assim um lamento, uma dor compungida agarrada a um verbo deslassado, a noite gasta em insónias inférteis.
Sob os pés destemidos, um precipício avança na vertical para o fino recorte do rio. Naquele momento, ninguém tem medo de vertigens. Ninguém cala a voz para protestar contra a extinção da vontade ditada em forma de lei, ou apenas por usufruto habilitado pelo costume. A matéria incandescente ferve na boca do vulcão, perenemente aceso para ninguém esquecer que é um vulcão. As vozes admiradas esquecem os contratempos: é poesia bucólica, a que se entretece nos dedos que gravitam desde os socalcos que descem até ao rio fundo. Os socalcos civilizam o precipício, que deixa de ser um pesadelo.
Os pés desenham formas geométricas na água fria que desce desde a montanha. Um rumor magro despenteia o silêncio: há quem diga tratar-se de um poema sem gramática que não seja a da imagem composta pelo caudal a vencer o chão pedregoso. O medo e a angústia foram traduzidos num idioma que os esconjurou.
Os braços desamarrados militam em desfavor do pavor dos tiranos que investem contra a sua vontade. Se houvesse um nevoeiro a destempo, seria para calar esses tiranos – e dizem, para que não fiquem dúvidas, a única forma de censura permitida. Se os rostos não se escondessem no seu próprio esperanto, não ficavam reféns dos arranjos avulsos. Têm a tela entesourada como pano de fundo. E os sonhos, que se refugiam dos imprudentes sacerdotes que se saciam da vontade dos outros.
O princípio da separação dos lixos ensina que as coisas têm um cadastro, elas próprias arrastam pela asa o seu cartão de identidade. Não se estranhe que sejamos uma identidade antes de termos a titularidade do sujeito. Contamos pelo que somos, não por quem somos. E convivemos com o preceituado, assim que somos ensinados que a civilização tem custos que somos nós a suportar. Muitas vezes, esquecemos de comparar os custos com os proveitos.
É pelas ameias da civilização que se tecem as regalias que são a contraprestação dos custos necessários. Trocamos benefícios por obrigações. O sinalagma é o esteio das sociedades. Como ensinam a partir dos bancos da escola, não se queira ter o dado e o arregaçado. Para termos, temos de dar. E damos para termos o direito a ter. Como se ensina a partir dos bancos da escola – e depois é sepultado sob o peso de uma rocha pesada, quando os princípios cedem à vulgaridade da prática que arremata o desmame da igualdade.
Como damos para ter e temos para dar, participamos num jogo de soma zero. A arquitetura por que nos regemos baseia-se na lógica da aritmética nula. Calculado o deve e o haver, o que sobra é um zero. Se formos acríticos seguidores da ordem estabelecida, é um zero afortunado. Sinal do equilíbrio, a banalização da igualdade que também se ensina desde os bancos da escola. Ou, quando a desigualdade teima em agredir a alma da sensibilidade social, torce-se propositadamente o deve e o haver para que alguns fiquem a haver e sobre outros repouse o encargo do débito. Até aqui o equilíbrio é atingido: o crédito de uns provém do débito dos outros, uma circularidade potencialmente perfeita. A equidade é o cimento que escapa à alçada da corrupção dos desvalores.
Como um todo, aspiramos ao zero. Ao contrário dos vieses habituais, o zero não é neutro nem é anulação da matéria numérica. É equilíbrio. Através do zero somos semelhança.
Mas, até ver, o zero não passa de um sonho que transita no éter da utopia. Até ver, ninguém é zero. Todos somos dissemelhantes.
Irritam, as pessoas que leem doze horas no relógio e traduzem num displicente “meio-dia”. Se o dia nascera com a luz inaugural que ainda é infante às seis horas, das seis às doze perfaz apenas seis horas. Ora, o dia não é feito de doze horas para se considerar que passadas seis horas desde a sua nascença já estivesse ancorado à sua primeira metade. Não admira tanto insucesso escolar na matemática.
Não sei como procedem os arquitetos quando alguém lhes diz: “passa-me a faca da cozinha que está na primeira gaveta”. De acordo com as convenções em curso, a primeira gaveta é a primeira quando se contam as gavetas de cima para baixo. Se a fileira de gavetas correspondesse à lógica do edificado para propriedade horizontal, e se ela fosse composta por cinco gavetas, aquela que foi tida como a primeira devia ser a quinta gaveta. E o arquiteto, abria a primeira gaveta a contar de baixo?
Os incidentes também acontecem com as palavras, que a semântica não fica à margem de contratempos. Um parque de estacionamento de embarcações de recreio dá pelo nome de “marina”. A etimologia da palavra remete para o mar: uma marina é uma estrutura de parqueamento de embarcações de recreio situada no mar. Fixada a nomenclatura, depressa se avivou a adulteração do significado do termo. Também há rios que acolhem estas infraestruturas que, apesar de assentarem em águas fluviais, continuam a dar pelo nome de “marina”. E tu, já foste ao dicionário ver se existe a palavra “fluvina”?
As expressões idiomáticas são um chão fértil para equívocos semânticos. Diz-se, por exemplo, que alguém está “a correr atrás do prejuízo”. O sentido que dá sentido à expressão é de alguém que se esforça para compensar, ou até superar, um contratempo. Como quem diz: é isto que tenho de fazer para ultrapassar a contrariedade. Entendida no sentido literal, a expressão “correr atrás do prejuízo” ilustra o contrário do seu entendimento enquanto expressão idiomática: se vou atrás do prejuízo, quando o agarrar, a posição em que fico não será mais favorável do que a que me encontrava antes de o ter agarrado.
Num cosmos tão dado à materialidade, ninguém quer ficar com o prejuízo. Porque corre atrás dele é um enigma (ou apenas um incidente que desonra o idioma).
Dizia o adágio popular: “preso por ter cão e preso por não ter”.
Dizia-o, repetidas vezes, como se decorasse o guião de uma peça de teatro. Com medo que a pele ficasse obsoleta e as opções emagrecessem a um quase nada. “Dantes” – disse, resgatando uma memória – “levantavam-se consumições quando não sabia o que fazer entre as várias possibilidades que se cotejavam.” Era demais e o de mais esbarrava na decisão que não queria fortuita.
“Não era no totobola que se podia jogar na tripla? Mas era o máximo de três triplas, se a memória não me atraiçoa.” O que se foi lembrar! Ainda há totobola, agora que os tempos modernos multiplicaram a dependência do jogo por inúmeras fontes. Ainda sobrevive, o totobola? Quem apostava no totobola?
Eram pensamentos reservados ao pensamento e que ecoavam à distância: o totobola, o convite para os apostadores ensaiarem uma profecia em causa própria. “Podias usar o método 1X2 quando te sobressaltam quase dúvidas existenciais sobre o que fazer, aonde ir, com quem não ser acompanhado – ou que mote usar sem escorregar nos lugares-comuns que fermentam a vulgaridade.”
Não parecia legítimo atuar como nas apostas triplas do totobola. A vida não é um jogo, por mais que se perca a noção de estarmos a jogar com a vida (própria, ou dos outros). Fazer 1X2 era parecido com a leviandade de quem não acautela as possibilidades que se terçam no tabuleiro, dedicando-se à perícia da indiferença. Era como forjar uma cura para um espinhoso problema e fingir que a cura não estava a ser forjada. Recusou a analogia:
“Se há três hipóteses e elas são diferentes, se têm consequências que podem ser opostas, não é indiferente a escolha. É preciso avaliá-las com critério. O método 1X2 é uma fuga para dentro. Uma não escolha. As três hipóteses são possíveis e parece que não têm diferenças. 1X2 é para os covardes que se dissimulam na penumbra da indecisão.”
Era preferível a aposta única, apurando o critério da escolha, recusando as facilidades da aposta tripla. Quando se vai a jogo sabendo que ou se ganha ou se ganha, o jogo perde o sortilégio. E quem assim procede pode ser acusado de medrar num logro.
Sempre que falamos do tempo presente usamos, com elevada autoindulgência, o rótulo da modernidade. Pois não há nada mais moderno do que o presente e só se aspirarmos a ser autores de uma profecia é que podemos arbitrar a pós-modernidade. E esta modernidade, tal como as sucessivas levas de modernidade que o passado conheceu (então como presente), é diferente das modernidades anteriores. Sempre foi diferente.
Esta é uma modernidade dada à excentricidade – e este é um subjetivo olhar. É uma modernidade dominada por uma coligação entre governos e a maioria dos cidadãos que, eleição após eleição, consensualiza a engenharia social que se entretece. A modernidade é atravessada por paradoxos. O que seria de louvar, na ótica de quem foge de rotinas que causam um enjoo sistemático, não fosse a tradução de ventos opostos e aparentemente irreconciliáveis. Um exemplo: a “decadência dos valores”, tão apregoada por aqueles que insistem num compasso moral, com visibilidade no relativismo e no hedonismo, entra em choque frontal com o paternalismo estatal que vigia, impõe e proíbe, à vez ou em conjunto, e anima um novo moralismo que infantiliza o cidadão. A maioria de cidadãos consente a sua infantilização a pretexto das regras e valores que devem orientar a vida em comunidade. A dissidência é entendida como misantropia.
Das notícias do dia arremato três exemplos que juntam, no mesmo palco, um périplo de proibições (ou proibições disfarçadas de recomendações), um caso insólito que nos atira para o limiar do surrealismo, e a sempre vigilante sanha moralista que não perde tempo a denunciar comportamentos dos outros, sujeitos ao apertado escrutínio desse moralismo.
Primeiro episódio: o governo espanhol inventou um passaporte para a pornografia. Gente atenta à saúde humana terá concluído que a dependência de pornografia é uma patologia, com a agravante de desviar os mais jovens de uma “sexualidade saudável” (seja lá o que isso signifique). E lá vem o grande irmão, sempre de atalaia ao bem comum, estender o tentacular paternalismo para o cidadão não se converter ao vício despudorado da pornografia. Em doses controladas, a pornografia é aceitável. O governo espanhol descobriu, na sua cartola da arbitrariedade, que trinta credenciais de acesso a conteúdos pornográficos por mês é a medida aceitável. O cidadão espanhol tem de agradecer a bem-intencionada vigilância do governo: o consumo moderado previne dependências obsessivas. Falta saber se no próximo capítulo o governo de Sanchéz vai decretar uma métrica máxima das relações sexuais, com regras que estipulam com quem se pode manter sexo e o que é permitido e vedado fazer.
(Continuando a fantasiar, por que não instituir a métrica mínima e, caso ela não esteja ao alcance do/a cidadão/cidadã, o Estado devia disponibilizar serviços a preceito para compensar a falta, hipótese que admitiria, a bem da sanidade mental, uma quota adicional de credenciais mensais de acesso à pornografia.)
Vou saltar as possíveis ligações subliminares entre o clicar numa banana e a notícia anterior para restringir à “matéria” objetiva, ou seja, o jogo em apreço. O minimalismo do jogo – imagine-se o que é o movimento repetitivo de clicar na banana – sinaliza a cura contra a complexidade que é apanágio da modernidade. Cercados pela informação torrencial que transporta a difícil empreitada da seleção e da interpretação, corremos contra a maré através de um gesto simples. O minimalismo contra a intensidade do tempo presente. Fazendo a ligação com a notícia anterior, quem sabe se o jogo não foi secretamente concebido pelo governo espanhol como terapia à disposição dos que são dependentes de pornografia.
Terceiro episódio: um jornal sensacionalista descobriu que a mãe das gémeas (que tiveram direito a um tratamento médico dispendioso depois da alegada intervenção de um facilitador-filho-do-presidente da república) se dedicava à venda online de produtos sexuais no período em que viveu em Portugal. A notícia é apresentada com a habitual dose de sensacionalismo, juntando-se um bolorento juízo de carácter por Daniela Martins se ter dedicado à comercialização de artefactos que, possivelmente para o jornal, serão usados por mentes depravadas e dadas à luxúria irrefreável.
Só o juízo de valor é ostensivo: a malvada senhora, que conseguiu extrair aos contribuintes portugueses uma verba elevada para o tratamento das suas filhas, ainda por cima é brasileira (ó sinal dos tempos, que amadureceste uma xenofobia e um racismo que dantes se julgavam apenas latentes) – ainda por cima foi dona de uma sex shoponline. Eis a sua desqualificação final. Se fosse peixeira, ou mulher a dias, ou assessora de um grupo parlamentar, tudo nobres atividades que não colidem com o passaporte da moralidade dominante, Daniela Martins só arrastava o opróbrio dos meios ínvios que usou para ter acesso ao tratamento tão oneroso (as facilidades do tão reputado facilitador, como se todos fôssemos virgens no exercitar da não menos famosa instituição nacional, a cunha).
Uma mãe que, legitimamente enquanto mãe, procurou um tratamento para a doença rara das filhas gémeas, usando meios que os zeladores da moralidade consideram reprováveis, afinal tem um passado que fica em débito com os bons costumes. Devia ser instituído um passaporte de bons costumes que avaliasse quão impolutos somos e fomos. Imagino que os jornalistas do periódico sensacionalista saíram diretamente de um convento, mas já nem esta é uma credencial à prova de suspeitas nos dias correntes. Adivinho que esses jornalistas nunca foram a uma sex shop, nunca tiveram aquilo que os patronos dos bons costumes chamariam comportamentos sexuais desviantes, nunca frequentaram a pornografia (online ou outra), nem têm contas a ajustar com a sua consciência nesta “matéria”.
Continuamos a ser exímios a julgar os outros e a esquecermos de estender o exercício a nós mesmos. Bem-vindos ao império da moralidade com fundo falso e da hipocrisia averbada no cartão de cidadão.
Não dizias a bota com a perdigota – sem saberes, ao certo, o que a expressão idiomática queria dizer. Ouvias-te, se é que possível a abstração entre os sentidos, e temias que já não fizesses sentido. Era o sentido que deixava de rimar com os sentidos. Como se fosses um súbito embaixador do surrealismo, numa versão recauchutada.
Ao certo: as moedas na algibeira e uma meia rota (a direita). Os sapatos puídos e a limonada que serviram na esplanada e sabia a mofo. Talvez os limões estivessem fora de validade e escondessem umas vírgulas de bolor. Adivinhaste umas cólicas e, talvez, uma convulsão gástrica que levaria de emergência a uma casa de banho. Talvez esconjurasses as ideias pesadamente órfãs que te assaltavam. Era melhor não pensares no assunto e enganares o estômago com uma bebida qualquer que fosse pior veneno. Lá veio um gin tónico suplementado por um toque de tequila.
Regressaste aos pensamentos pretórios. De manhã, quando entraste no metro, estava uma rapariga a tocar guitarra, com o chapéu jazendo no chão a servir de mealheiro à generosidade de quem passava e não estivesse absorto com os múltiplos afazeres que a agenda mental inaugurava para o dia nascente. A rapariga era nova e calva. Ficaste sem saber se a calvície era estética ou se era consequência de doença. Como a interrogação só te ocorreu quanto o metro cavalgava os carris, e como não tiveste o incómodo de sair da carruagem, atravessar para o outro cais, apanhar outro metro e sair na estação de origem, ficaste sem saber. Não era por falta de tempo. A tua demorada condição de desempregado não deixa que te refugies na ladainha das pessoas eternamente afadigadas. Não te podias abraçar à falta de tempo.
Ao anoitecer, deitaste o olhar para trás. Um exercício habitualmente inútil, esse de inventariar o apanhado do dia. Tirando a rapariga calva que tocava um hit da música pop dos anos noventa – talvez isso explicasse a indiferença dos mais novos –, não vinha nenhuma memória ao espelho do tempo que estendias diante do olhar. Devias andar distraído, ou imerso em profundos e, todavia, estéreis pensamentos que te distraíram do ecossistema à volta. Nem te lembravas do jantar (ou, tão distraído, nem te lembraste de jantar?).
Antes que viesse o sono, não querias a anestesia da televisão. Pegaste num livro ao acaso, entre o rol empilhado na mesinha de cabeceira. Era sobre ecologia. Compraste-o há quase dois anos (de acordo com a data de compra que lacras na contracapa, para memória futura). Um dia sentiste a pulsão do rejuvenescimento, ou de apenas atualizares os conhecimentos com o conhecimento moderno, e compraste o livro. Nunca passaste do prefácio. Dava-te sempre o sono quando ias voltar ao livro.
Como andavas refém da insónia, caíste resolutamente no livro que explicava os fundamentos da ecologia moderna. Podia ser que o sono se libertasse das algemas. E que o livro tivesse, afinal, serventia. Para não voltares a ouvir alguns dos mais próximos, em tom de reprovação, a advertir: “o teu mal é sono”.
Apetece imaginar o que teríamos entre mãos caso houvesse uma segunda volta das eleições legislativas e só pudéssemos escolher entre duas coligações de radicais. Esta hipótese até pode não motivar a perplexidade de muitos leitore(a)s, aquele(a)s que não têm problema em escolher o mal menor entre duas coligações de partidos extremistas. Para ele(a)s, não se colocam dúvidas entre escolher protofascistas e uma miscelânea de esquerdas radicais e, algumas delas, com duvidosa linhagem democrática. No meu caso, que me encontro nos “degenerados” que alinham pela teoria da equivalência entre a extrema-direita e a extrema-esquerda, a hipótese leva-me a um pesadelo dantesco.
Se esse pesadelo se materializasse, seríamos obrigados a escolher entre uma coligação liderada por Rita Matias e outra liderada por Mariana Mortágua. A coligação à direita reunindo partidos que foram fazendo concessões ao Chega e personagens que se radicalizaram com a radicalização em curso. Personagens que se aproximaram da extrema-direita, reagindo ao extremar das hostes contrárias – à semelhança de um argumentário que fundeou legitimidade na geringonça para defender que os partidos do centro-direita não deviam estabelecer linhas vermelhas em relação ao partido de Rita Matias. Reduzindo o PSD e a IL a mínimos impensáveis, deixando nas mãos da coligação liderada pelo Chega a alternativa à coligação das várias esquerdas.
Às esquerdas, um processo idêntico, inspirado na geringonça. Sob pretexto da engorda da extrema-direita e das demais direitas cerrarem fileiras à volta de Matias, para até a esquerda moderada (o PS de Alexandra Leitão) se situar numa latitude nunca dantes vista. Toda uma retórica e um programa de governo ditados pelos radicais à esquerda, aos quais os mais radicais dentro de PS (tendo tomado conta do partido) fizeram concessões. Com o silêncio taticamente comprometido do PCP de Alma Rivera e o frenesim moralista e folclórico do BE e do Livre, mais a boleia que o PAN teve de apanhar.
Este seria o cenário mais ou menos decalcado do cenário com que os eleitores franceses se confrontam na segunda volta das eleições legislativas, a 6 de julho. Se este cenário se reproduzisse em Portugal, qual seria o lugar para os eleitores moderados, situados num amplo espectro entre as duas coligações extremistas a concurso? Do que vou lendo nos jornais franceses, os políticos do centro, personificados na derrotada coligação ligada a Macron, não parecem hesitantes: seu será o voto na Frente Popular. Como se estivessem ameaçados por um espada que os encostou à parede, desafiados a tomar uma decisão que os leve a escolher uma das coligações radicalizadas, os políticos do centro sinalizam aos seus eleitores uma escolha: o seu voto deve impedir os protofascistas de tomarem conta do governo.
É um voto pela negativa. Não é a escolha da Frente Popular, é entregar o voto a esta coligação para impedir que os protofascistas sob tutela de Marine Le Pen tomem o poder com o beneplácito da democracia. Votar para impedir alguém de chegar, ou de continuar, no poder faz parte da História e da ontologia da democracia. Quem não se lembra do famoso sapo que Cunhal engoliu (e mandou engolir aos fieis militantes do partido) quando Freitas do Amaral e Mário Soares disputaram a segunda volta das eleições presidenciais de 1986?
Voltando ao exercício especulativo à escala nacional (ou seja, ao meu pesadelo): o(a) leitor(a) moderado(a), que não teria votado na coligação de direitas liderada pela radical Matias nem na coligação das esquerdas que deslocou o compasso muito para a esquerda, como votaria na segunda volta se o sistema eleitoral fosse igual ao francês? Apenas posso responder por mim. E regresso ao cenário do pior dos pesadelos: primeiro, não tenho por hábito ausentar-me das eleições; segundo, nunca dei para o peditório do voto útil; terceiro – e para ampliar a dramatização do exercício especulativo, somando os dois primeiros aspetos – o(a) leitor(a) seria levado(a) à conclusão que eu teria de escolher entre uma das opções a concurso. Dito de uma forma que me agride as meninges: era votar na coligação Matias ou na coligação Mortágua.
Para o(a) leitor(a) entender este dilema que daria palco a um pesadelo colossal, não se esqueça que parto de um pressuposto que nem todos aceitam: um pesadelo dentro de um pesadelo é imaginar que o governo aterrou no colo da extrema-direita ou da extrema-esquerda. É a teoria da equivalência dos males que faz parte dos meus pressupostos políticos. Resgato um episódio ocorrido nas ruas de muitas cidades francesas na própria noite das eleições, após a divulgação dos resultados: muitos extremistas e, imagino, assim não tão extremistas vieram para a rua protestar contra a vitória da extrema-direita. Causa-me tanto medo a hipótese de a extrema-direita governar como a extrema-esquerda ostentar os seus pergaminhos antidemocráticos quando sai à rua para protestar contra uma vitória eleitoral selada pela maioria dos votos dos eleitores.
É perante este quadro que reproduzo o cenário para Portugal e sou assaltado por um pesadelo aterrador. Não querendo prescindir do voto, e supondo que o voto em branco não seria alternativa viável, era como se dois punhais adejassem sobre as carótidas opostas. Cada um deles prestes a ferrar fundo numa das carótidas assim que a minha opção recaísse no outro concorrente às eleições. Porque, ao contrário de alguns bem-pensantes, a extrema-direita mete-me tanto medo como a extrema-esquerda. Sei que nem votaria na extrema-direita para impedir a chegada ao poder da coligação das esquerdas, nem votaria nesta coligação com medo da ascensão ao poder dos protofascistas e seus aliados. Para não ser cúmplice de dois cenários aterradores.
Se o(a) leitor(a) for moderado e perfilhar esta angústia onírica, então inclua nas suas orações (caso não seja ateu/ateia) o desejo de não irmos a caminho de tanta polarização como em França. Porque os radicalismos radicam na polarização e alimentam ainda mais radicalismo e polarização. Talvez um regresso às lições da História – e da História recente – seja mais do que apenas pedagógica. De outro modo, o(a) leitor(a) já pensou que sapo ia engolir se estivesse assoberbado pelo mesmo pesadelo?
Numa música de Sam the Kid, está enxertada uma frase nostálgica sobre a sedução, dita por Vítor Espadinha: “quando eu era mais novo havia uma coisa muito bonita que era a sedução.” O músico veterano parecer lamentar como a sedução foi exaurida pela modernidade. O artista convoca um romantismo que se perdeu pelo caminho do tempo a favor (ou, diria ele, em desfavor) de um pragmatismo que rima com a despersonalização do amor.
No tempo em que Espadinha se tornou perito na sedução, a sedução era um jogo de palavras e de gestos. A assimetria na interação fazia parte do código de conduta: o homem era o sujeito ativo da sedução, à mulher estava reservado o papel da seduzida. No jogo da sedução, ao homem era permitida uma semântica que veio a ser banida décadas depois. Não foi a única razão que ditou a ostracização da sedução. Também concorreu a alteração de hábitos. Seduzir alguém passou a ter um novo código, impessoal e trespassado pela igualdade: na sedução atualizada à modernidade (a sedução homeopática ou descafeinada – ou a sedução em vias de extinção), não só a mulher pode seduzir como essa sedução rompeu as baias da heterossexualidade.
Hoje a sedução é um jogo arriscado para quem a quiser praticar. Não se considera sedução o piropo boçal que cuida de arrematar a(o) seduzida(o) como se fosse um mero objeto ao serviço da(o) sedutor(a). A linguagem de taberna não quadra com a sedução, que nos seus tempos áureos era sofisticada, era um jogo de palavras e de atos que não era entendido como a perseguição da destinatária da sedução. Os sedutores eram requintados, punham a boçalidade fora do perímetro de segurança. Outrora, as seduzidas ainda não tinham sido sensibilizadas para a distinção entre sedução genuína e uma procissão de arrotos sentados sobre o pedestal da posição soberana do homem e da subordinação irremediável da mulher, a que não se pode chamar sedução.
O tempo, e a diligência dos homens e das mulheres (a ordem é arbitrária), foi corrigindo essas anomalias. A sedução foi sacrificada. A fronteira entre o que é sedução e assédio inclinou-se a favor do reconhecimento de casos de assédio. Os sedutores à la Espadinha teriam a vida difícil se continuassem a ser sedutores como aprenderam a ser no seu tempo. Grande parte da retórica de sedução seria hoje entendida como uma manifestação de assédio.
Não tenho a certeza que isso seja necessariamente um progresso.
As teimas tiram-se no oráculo onde o olvido se cumpre. É uma vingança, mas sem o perjúrio das vinganças. Uma assinatura indissipável, atropelando os contratempos herdados em sucessivas camadas da memória.
A escultura parece inacabada. Vista de fora, ninguém diria. Um olhar criterioso desafia a convicção. A impressão de imperfeição adeja sobre a escultura, como se uma voz paternal garantisse a renovação dos tempos e tudo acabasse por ser uma meticulosa repetição do havido.
Mas há espíritos insatisfeitos. Espíritos que não transigem com o contrabando dos sentidos orquestrado nos veios tentaculares que se movem por dentro de um labirinto ermo. Escolhem a rutura. Encenam palcos originais, uma mistura de cores nunca experimentada. Travam o avanço da monotonia que pertence ao exercício repetitivo dos que temem a mudança de alguma coisa.
São os procuradores da revogação. Exigentes com a coreografia dos tempos, vestem-nos do avesso e não têm medo de serem olhados com desconfiança como párias que ambicionam o desestabelecimento de muitas coisas. Ao contrário dos inquilinos do estabelecido, não se assustam com a incerteza. Sublevam-se contra o presente desqualificado que condena as pessoas a viverem abaixo das suas possibilidades.
Por isso, decretam unilateralmente a revogação de tudo o que seja espelho da decadência, mesmo que não saibam do verbo titulado pelo amanhã, mesmo que uma penumbra assustadora desmotive os espíritos comprometidos com a denúncia da decadência. Revogam, sem terem uma ideia do que vem substituir o revogado. Querem ficar lembrados, em memória futura, com os que não se intimidaram com a penumbra da aventura e condenaram a mediocridade à extinção.
Depois, trazem às costas, em sacadas desarranjadas, a ossatura do que teve alcance pretérito. Vão a caminho de uma entulheira. Nem para memória museológica servem, esses destroços. Quando regressarem, vêm-nos dizer que a empreitada teve recompensa. Terão o cuidado de não negar a validade do passado. Mas dirão, enfáticos, que a revogação por si selada será a fiança do futuro, para dele não termos medo.