James Blake, “Thrown Around”, in https://www.youtube.com/watch?v=SLqJgABXlWI
Era o trinta e sete ou o trinta e cinco que apanhávamos quando queríamos ir à Baixa. O trinta e sete era melhor: cortava caminho sem descer ao Fluvial e subir as Condominhas, como acontecia com o trinta e cinco. Era uma diferença de quase dez minutos. Preferíamos o trinta e cinco. Descia ao Fluvial e víamos o Douro que aí recebia as águas até então subterrâneas do Ouro, seu afluente (um dos últimos afluentes antes do Douro se tornar afluente do Atlântico).
Depois subia a rua empedrada e irregular a caminho de Lordelo. Nas paragens recebia velhinhas reformadas que iam ao mercado, outras à consulta no Centro de Saúde, velhos reformados que possivelmente iam a caminho da tasca para as jogatanas com os amigos e uns copos de três até a vista ficar embaciada e dizerem coisas entontecidas, um ou outro drogado que acordara antes de tempo (mas tarde, se as outras pessoas fossem usadas como comparação).
As velhinhas metiam conversa umas com as outras. As que se conheciam por serem vizinhas e as que se conheciam de outras viagens no trinta e cinco. E as que nunca tinham falado umas como as outras, que depressa passavam a ser confrades a propósito disto-e-daquilo que viesse a talho de foice e destravasse a língua. Falavam dos filhos, dos netos, das apoquentações de serem mães e avós. As que não falavam dos maridos eram ser as viúvas, identificadas à distância por não se desprenderem do luto perene que era o vestuário imperativo. As que falavam dos maridos não usavam palavras boas: o casamento era uma maratona sacrificial e a imagem do amor parecia desfocada pela distância do tempo em que houvera um módico de paixão. O marido, se não era a pior pessoa do mundo, andava lá perto.
Os velhos iam sempre em silêncio. Quando entravam no autocarro estudavam meticulosamente a ocupação. Escolhiam lugares que não fossem próximos das comadres que tagarelavam ruidosamente e com proficiência. Não escondiam o ar de enfado quando mais velhas entravam no autocarro umas paragens à frente e se sentavam próximo deles. Não escondiam o enfado, com indisfarçáveis esgares de desprazer, quando a conversa ia dar aos maridos inúteis, os maridos embaraços, com quem partilhavam a vida. Tínhamos a impressão que, de tão contrariados, os velhos eram obrigados a incinerar as mágoas na tasca, animados pela solidariedade de casta que era ativada assim que um deles reproduzia a conversa ouvida no autocarro anterior.
E nós, observadores atentos, percebíamos que o mundo fora do ecossistema dos velhinhos e das velhinhas do trinta e cinco era idílico. Por isso, preferíamos o trinta e cinco. O trinta e sete era mais burguês. Mais silencioso. Não podíamos confirmar que fora do trinta e sete as coisas não andavam piores.
O trinta e cinco podia ter sido o tirocínio para o otimismo antropológico. Desde que a amostra que povoava o trinta e cinco fosse entendida como exceção.
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