31.7.24

Tardio

Max Richter, “Late and Soon”, in https://www.youtube.com/watch?v=b5v4cZNyoZw

1

Ecoam as folhas caídas das árvores, e não é outono. Os pássaros dormem à espera da próxima nortada. Escondem-se do luar. Como os Homens, ocupam um lugar térreo. Talvez quisessem trocar de lugar e oferecessem a hipótese do céu para o Homem saber o que é voar sem ser de avião.

2

Ao longe, a aldeia com telhados de xisto escorrega pela encosta. Um sortilégio para o olhar distante que a contempla. Duas ou três nuvens errantes colonizam a paisagem com um ar marmóreo. As diferentes luzes entrecortadas espelham-se no casario desordenado. Este é o domínio do silêncio. Mesmo quando o olhar se aproxima da aldeia, é um lugar ermo para pessoas.  

3

O menino pede um gelado à mãe. Não está calor, responde a mãe, convencida que o pretexto é mais convincente do que dizer faz-te mal aos dentes. O rapaz insiste até a ser autor de uma birra que se abraça a um pranto pontuado pela estridência dos gritos. As pessoas à volta viram o olhar para o berreiro. A mãe anui, antes que seja tarde. A birra do petiz fez mudar de ideias. Nos tempos que correm, os mal-entendidos depressa medeiam a reprovação social sem sequer se indagar se houve culpa. Assim como assim, no mês que vem o rapaz vai ao dentista.

4

A manhã arrastada pelo nevoeiro acasmurrado está quase a invadir o domínio da tarde. Parece um dia de letargia geral. Até os apressados condutores de motociclos que fazem entregas de comida ao domicílio cumprem o código da estrada. As peixeiras ficaram afónicas (ou o peixe não veio às redes). Uma estrela de rock disfarça a noite pouco dormida sob os óculos de sol que nem assim escondem as olheiras. Até o legislador nacional arrefeceu a atividade legiferante. Estavam reunidas as condições para o país não se atrasar.

5

O cão perdido afocinha no lixo à procura de comida. A trela está gasta e o pelo maltratado. Agarra um pedaço de carne que extraiu de um recipiente de alumínio que pertenceu a uma recolha em forma de take away. Os olhos desconfiados do cão motivam um esconderijo urgente. Não confia em ninguém – humanos ou canídeos outros – quando é para assegurar a sobrevivência. Ainda dizem que os cães são animais irracionais.

6

Um casal de pregadores da fé anda de porta em porta a angariar operários. São mais as portas que não se abrem – a hora é de trabalho e, para bem da economia nacional, a maior dos lares é de gente que não está no desemprego. A uma porta que se abre, o pregador de patente mais elevada, sob o olhar diligente da jovem talvez ainda em tirocínio, perora com eloquência contra a promiscuidade, o hedonismo e a capitulação aos instintos carnais. Por mais que uma vez o embaixador da fé espuma o verbo fornicar como se fosse o pior dos pecados. E ele, a roer uma fatia de pizza ressequida, não sabia bem por que ainda não tinha terminado o monólogo cristão se tinha uma amiga à espera no quarto. Antes que fosse tarde, esperou (educadamente) que a boca não estivesse ocupada a mastigar a fatia da pizza, para (educadamente) comunicar que não estava interessado na prédica. Como a prática seguinte cuidaria de provar.

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