17.2.25

O rabear de Bukowski

Morgan Nadler, “Cradle the Pain”, in https://www.youtube.com/watch?v=d91xdIax-xw

À altura da lucidez, um tirada sem corpete, a aliança certa com um estado demencial. Poderá ser apenas provocação, a vontade de desafiar os que se habituam a levar uma vida desinteressante e que nunca interrogam a existência – e dizem: é um favor que lhes fazem, se eles tiverem a lucidez de soltar as amarras que os condenam à apatia. Ou poderá ser mesmo critério, um apelo interior de rebeldia a atravessar as avenidas instaladas que odeiam os que se sublevam contra os costumes. 

À altura dos artistas rebeldes que nunca sossegaram a não ser na morte: deles é a licença amortalhada que tudo deitou a perder nas vezes em que o ar parecia combinar com um módico de estabilidade. E eles, insatisfeitos, incapazes de empunhar uma clepsidra de estabilidade, voltavam tudo do avesso. Pois o avesso é a sua ordem desordenada, ou o caos organizado, uma miríade de contradições intencionalmente terçadas num concurso de figuras de estilo. 

As biografias póstumas não escondem a ambiguidade: génios que merecem admiração, mas que se fossem pessoas comuns eram enjeitadas como párias. Só esta contradição já fermentou muita prosa sobre a contaminação do artista com o seu espírito não recomendável, ou se a pessoa tem de ser desligada do artista para salvar a obra e salvar o artista da pessoa. À conta deste exercício que tem demorado os exegetas, os insurretos foram pródigos ao darem tanto que falar. 

A forquilha acena como se fosse um espantalho. Amedronta as pessoas comuns. Os desalinhados, mergulhados na misantropia, agarram-se à forquilha e confirmam-se espantalhos. Agem como se precisassem de um agente exterior, uma substância que seria evitada pelas pessoas comuns, para avivar a personalidade que os torna reprováveis. Reprováveis pelos mesmos que os pajeiam, desfazendo-se em genuflexões à altura da genialidade da obra. Gente que disfarça não sentir o desdém dos génios que louvaminham, fazendo de conta que não ouvem os impropérios que o génio profere sem cuidar de os disfarçar. Ainda agradecem, com o sorriso amarelecido de quem finge não ter sido ultrajado – tudo em nome da arte, o expediente sublime para tolerar o que nos outros seria intolerável. A arte ascende ao calabouço onde sepulta a igualdade.

Os génios industriam as artes a tiracolo do mau feitio. Há quem diga que é condição exigível para chegar ao púlpito de uma arte. O que serve para atear a centelha do otimismo antropológico, como se fosse entoada uma hossana à humanidade: se os génios são uma ínfima minoria, os outros todos são boas pessoas. Nem que Bukowski rabeie de raiva, a título póstumo.

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