21.2.25

O cavalo de Troia, não a caixa de Pandora

Kim Deal, “Big Ben Beat”, in https://www.youtube.com/watch?v=f-rFrdF6NzQ

Dantes as guerras não passavam na televisão. As revoluções, também não. Mas dantes era quando não havia televisão. As duas hipóteses nem deviam ser lembradas, por manifesta impossibilidade. Seria como trazer do futuro as condições vigentes para o presente, mas ninguém pode reivindicar profecias, a menos que seja displicente.

Agora que as televisões narram em direto as atrocidades em que alguns humanos se empenham, nem assim se aplica um código de conduta às guerras – é o que protestam alguns ingénuos, convencidos que a espécie é credora de confiança. Devia ficar estabelecido que as guerras não obedecem a códigos de conduta, pois uma guerra é, para os devidos efeitos, uma desconduta. É como chamar “civil” a uma guerra, das mais hediondas contradições de termos em que a semântica beligerante é pródiga.

Outros, padecendo de miopia intelectual (para não levantar hipótese ainda menos simpática para as respetivas capacidades cognitivas), metem o avesso na análise e decretam a vítima como algoz, ilibando o algoz, depressa constituído em manso carneiro que nunca praticou o mal nos outros (sobretudo quando estão perigosamente no sopé de um arranha-céus a dançar com o precipício). 

Às vezes, o sucedâneo da justiça divina passa à prática. Ou pelo menos, espera-se que assim seja – escorregando para as tremendas profecias autorrealizáveis que poucas vezes se confirmam quando o futuro beija o apeadeiro. As muitas caixas de Pandora podem conter o inesperado. Por exemplo, um cavalo de Troia. Esplêndido, majestático, deixando inebriados os transeuntes da cidadania que andem nas digressões diárias pelos palcos que contam. Eles e os mandantes, habituais peritos em tresler a verdade, escorregando para uma procissão de mentiras que se encavalitam fazendo com que a mentira minta a si mesma, que seja mentira da própria mentira.

Do opulento cavalo de Troia estará prestes a sair uma milícia à revelia dos poderes, equipada com o desassombro do método filosófico, só para interrogar os embaixadores da impostura sistemática e os fazer cair do pedestal. Haverão de saber que não compensa a usura que amanhece no matrimónio da ignorância com a mentira compulsiva. A opulência do cavalo entontece os incorrigíveis embaixadores da beligerância. Por um efeito quimérico, serão desapossados do arsenal de mentiras e aspersados com um módico de inteligência. 

Maquinalmente, encerrarão as caixas de Pandora e passarão a andar com o cavalo de Troia à lapela.

Sem comentários: