25.2.25

O avesso do mundo

The Smile, “Don’t Get Me Started” (James Holden Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=jploYl1mL2M

              Que juros levamos aos vultos que se sobrepõem aos sonhos?

Desde os bancos do jardim, onde é possível contemplar o tempo no seu vagar (afinal, o tempo corre a velocidades diferentes), as nuvens que alisam o céu parecem pequenas vírgulas que se sobrepõem num pano límpido. O olhar não está refém da atualidade. Libertou-se das suas amarras. Tem de haver tempo, entre o tempo que nos está destinado, para nos exilarmos do planeta grotesco que insiste em desfigurar o mundo heurístico que a espécie continua a despovoar com a sua insidiosa mão apocalíptica.

Não se compõem os versos capazes ao sufragar cada linha que se adiciona ao inventário do mundo – o que virá a ficar conhecido como História. De vez em quando, olhares conspiradores averbam o lado mau. Fazem um favor feito a quem quer saber das compensações que o mundo, apesar de tão agredido, continua a legar. Devia ser levantado um tratado monumental à prodigalidade do mundo. Mesmo sendo tão vilipendiado, não escapa ao dever que ninguém lhe imputou. Ninguém se pode queixar de tamanha generosidade. 

As vozes que dançam não perturbam o sono dos tutores da bondade sobrante. Toda a fealdade que se abate sobre o horizonte, como se tratasse de retratar, numa tela baça, o circunspecto e plúmbeo cenário que encerra em formol uma cidade que exacerba a decadência industrial, surge como um bouquet de flores flácidas e descoloridas. A essa fealdade devia ser atribuída uma autoria, para que fossem dissolvidas as dúvidas que adejam sobre os mais céticos: os mastins seriam identificados. Uma trovoada pode não ser o palco medonho onde se arrebatam os medos; pode ser uma tela esplêndida, os flashes irradiando ao acaso, interrompendo a escuridão que costura a noite. Desde que os mastins estejam inventariados.

Não se pergunte pelo paradeiro das recompensas se não elas não forem inteligíveis. As marés sucedem-se, espaçadas pela regra do tempo. Os olhares que se encantem com a dádiva do luar, o sortilégio da alvorada, a coreografia de diferentes luzes que se desembaraçam da escuridão. As mãos ungidas pelos versos que são o úbere da inspiração vestem-se no disfarce do tempo. 

O mundo não é aquilo que vem nas notícias. É o que está no seu avesso.

Sem comentários: