Sigur Rós, “Fall”, in https://www.youtube.com/watch?v=_p050iNdREc
Das notícias: um francês foi vítima de roubo. Entre os haveres roubados estava a carteira e dentro da carteira estavam os cartões de débito e de crédito. Os “amigos do alheio” aproveitaram a conveniência do dinheiro eletrónico e fizeram umas compras. Situam-se entre os viciados em jogos de azar, pois os agentes do furto compraram um bilhete da lotaria. Ou então, os meliantes estavam a acautelar o futuro: já que a sorte ajudou no pé-de-meia do furto, quem sabe se com um cartão de crédito platina denotativo de elevado plafond mensal, podiam tentar a sua sorte. Estavam a investir no futuro usando uma porção dos objetos furtados.
O bilhete da lotaria foi premiado com meio milhão de euros. Por uma série de circunstâncias que não é revelada na notícia, os ladrões não tiveram acesso ao prémio. Especulo: talvez a lotaria em França seja num formato virtual e os prémios são creditados na conta do titular do cartão bancário usado na transação. Continuando a laborar no universo das hipóteses, absurdo foi os ladrões terem completado a transação, pois não foi devolvida a prova da compra do bilhete da lotaria. O meio milhão de euros foi parar, sem desvios pelo meio, à conta bancária da vítima do furto.
Se os “amigos do alheio” tivessem deitado mão à cautela premiada, dir-se-ia que este era dinheiro sujo, ilegítimo? Se eles tivessem ficado com uma prova física da lotaria, seriam os legítimos titulares do prémio. Teriam feito uma pequena fortuna à custa de um ato ilegal e censurado pela sociedade. Seria à boleia do dinheiro alheio que teriam enriquecido meio milhão de euros. Isso não interessava à empresa que organiza a lotaria. O dinheiro que circula nestas operações comerciais não tem nome. Se não fosse pela conjugação de acasos (ou pela ignorância dos ladrões), este seria um caso paradigmático de redistribuição da riqueza com conotações ilegítimas, mas só se fosse possível rastrear o dinheiro que pagou o bilhete premiado. Não sendo o caso, ninguém podia objetar à redistribuição de riqueza operada.
Ainda mais insólito é a vontade da vítima do roubo, que quer dividir o prémio da lotaria com os ladrões. A vítima argumenta que se não fosse a iniciativa dos ladrões ele não tinha a conta bancária empolada em meio milhão de euros. Por isso, anunciou a intenção de mear o prémio com quem o conseguiu, muito embora ele tenha sido o financiador involuntário da transação.
Este comportamento não quadra com o comportamento padrão. A vítima habitual teria esfregado as mãos de contentamento ao saber-se abastada em meio milhão de euros. Teria condenado o furto e os seus autores e não descansaria enquanto a justiça não os perseguisse e concluísse o processo com exemplar punição em lei prevista. Não teria agradecido aos criminosos por o produto do furto o ter enriquecido. Teria rematado o raciocínio, deliberando sobre a ilegitimidade do ato que o fez meio milhão de euros mais rico. Atribuiria importância à ilegitimidade dos meios e não ao resultado alcançado. Tudo escorreito, de acordo com os padrões que correspondem às boas normas de conduta nos orientam.
A vítima do roubo entrou em rota de colisão com a boas normas de conduta. Reconheceu que não teria aumentado o seu pecúlio em meio milhão de euros se não tivesse sido assaltado. Este foi um assalto em proveito próprio, ainda que a ligação entre a causa e o efeito seja acidental. Para a vítima, não importa avaliar a legitimidade dos meios. Ateve-se ao resultado, reconhecendo que não seria possível se naquele dia e naquele lugar os “amigos do alheio” não tivessem deitado a mão à carteira que não era deles. A intenção de devolver metade do prémio aos ladrões é o ponto de chegada deste raciocínio. Um quarto de milhão de euros é suficiente para a vítima do furto. O outro quarto de milhão de euros compensa a diligência dos ladrões, que tiveram a perspicácia de apostar um quinhão do furto num jogo que, desta vez, foi de sorte.
Os desconfiados e os que não aceitam o comportamento altruísta da vítima do furto dirão, à procura da conspiração do momento, que a boa vontade é a fingir. Tudo não passa de uma encenação combinada entre a polícia e a vítima para atrair os autores do furto que, entretanto, estão em paradeiro incerto. Seduzidos pela possibilidade de serem recompensados com duzentos e cinquenta mil euros – como se o produto do furto fosse esse valor e, ainda por cima, com a caução de quem foi roubado –, os ladrões foram convocados para receberem a maquia prometida. Assim que se chegarem à frente, lá estarão as autoridades para julgarem a ilegalidade do ato que deu origem ao acontecimento.
Este comportamento é típico de gente aprisionada nos padrões e que não tem elasticidade intelectual para, à semelhança da vítima do furto, compensar uma injustiça (a ilegalidade de que foi vítima) com uma justiça devida por ter beneficiado do resultado do assalto. É a diferença entre não ter sido roubado e não ter meio milhão de euros na conta bancária e ter sido roubado e, por esse motivo, estar meio milhão de euros mais rico. Dividir os ganhos ao meio com quem os proporcionou é da mais elementar justiça. Nem que essa justiça esbarre na ilegitimidade dos meios e no choque psicológico dos cidadãos padronizados.
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