9.4.04

Caldeirada política à portuguesa (ou de como a memória é curta)

Soube-se anteontem, através de uma sondagem, que a maioria dos portugueses considera que o actual governo é pior do que os governos de Guterres. Claro que as sondagens “valem o que valem” – lugar-comum estafado, repetido à exaustão, mas que nem assim tem força suficiente para que meio mundo deixe de andar ansiosamente agarrado às sondagens que episodicamente são divulgadas.

Vamos supor, por um momento, que o resultado da sondagem é fidedigno. Eis como vejo as coisas: mesmo não gostando do desempenho do actual governo, ainda assim o seu desempenho é menos mau do que os governos liderados por Guterres. Sinceramente, não vejo forma de encontrar futuros governos que sejam tão maus como o foram os capitaneados por Guterres. Descontando os que tiveram como primeiros-ministros o comediante Vasco Gonçalves e o patriarca-mor Mário Soares, não tenho memória de governos tão maus, incompetentes e laxistas como os de Guterres.

A sondagem encheu de contentamento vários espíritos situados em lados diferentes do panorama político. Claro que entre os socialistas o regozijo atingiu os píncaros. Apesar de ainda vegetar o ressentimento pela orfandade que Guterres legou ao PS, com a sua debandada assim que viu o horizonte ensombrado, começam a emergir sinais de que a hora do perdão está a chegar.

Outros, que se dizem independentes mas que gravitam na órbita socialista, apressaram-se a tecer loas ao guterrismo. Foi o caso de Vital Moreira, que no blog Causa Nossa publicou um comentário que tinha um título elucidativo: “volta Guterres, estás perdoado”. O descaramento é tanto que tudo vale para passar uma esponja pelas vergonhas cometidas no passado. Apelando à população que empunhe a sua fraca memória, para assim branquear um dos períodos mais lamentáveis da governação após o 25 de Abril de 1974.

De outro lado da barricada, o impagável Manuel Monteiro e o seu Partido da Nova Democracia (PND) também se afadigaram em enviar sinais de contentamento. Não cheguei a perceber qual a intenção deste partido que reúne todas as condições para fenecer pouco tempo depois de ter nascido. Seria caucionar a governação desastrada de Guterres, ou apenas arreganhar os ressentimentos particulares contra o partido menor da coligação de onde eles próprios, PNDs, saíram em dissidência? Seria um aplauso à governação de Guterres, relembrando que Monteiro foi uma preciosa muleta enquanto líder do CDS-PP ? Ou seria apenas uma exibição ressabiada, própria de quem tem um ambição desmedida e sente que se detivesse o poder no CDS-PP seria agora ministro ao lado do PSD?

Bem vistas as coisas, talvez até fique contente com esta sondagem. Por incrível que pareça, sinto-me recompensado ao dar conta que a maioria das pessoas contactadas é da opinião de que os governos de Guterres eram melhores do que o de Durão Barroso. Se há característica que distingui a governação de Guterres foi o nada fazer. Muito se dialogava, mas nada ou pouco foi feito. Como se estes governos fossem um pai ausente, demitido das responsabilidades próprias de timoneiro do país.

O que me enche de júbilo é o seguinte: a revelação de que a maioria da população portuguesa é ultra-liberal. Só assim se concebe que reconheça mais qualidades aos governos guterristas, conhecidos por nada fazerem. E não é isto que um liberal mais gosta – que haja um governo mínimo, um Estado também ele mínimo?

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