29.4.04

Devemos censurar o “dumping social”?

Muitos arautos da “consciência social” peroram sobre a indignidade do “dumping social” nos países em vias de desenvolvimento (PVD). Quando um PVD exporta determinado produto com grande competitividade, e quando esta vantagem assenta no aproveitamento de trabalho infantil ou no espezinhamento de garantias fundamentais dos trabalhadores, tal situação enquadra-se no que se convencionou chamar “dumping social”.

Estes países fazem tábua rasa de certas garantias do ser humano que são o património genético da civilização ocidental. Só porque passam por cima dessas garantias é que estão em condições de beneficiar de uma competitividade acrescida no mercado internacional. Logo, são acusados de fazer concorrência desleal com os países mais avançados, onde aquelas garantias sociais são respeitadas. Os PVD são culpados de resvalar para o “dumping social”, aproveitam-se de uma batota indigna que os favorece no comércio internacional.

Para estes fautores de uma ética mundial unidimensional, o problema está na negligência de um catálogo mínimo de direitos que ultrapassa a esfera do trabalhador e repousa na pessoa humana. Acham que é impensável que nos alvores do século XXI certos países se possam aproveitar de trabalho infantil. Consideram indignas as condições de trabalho a que os trabalhadores destes países se expõem. Fazendo parte das conquistas inalienáveis dos trabalhadores, representando um capital inquebrantável dos padrões civilizacionais, tais garantias deviam-se estender a todo o mundo. Seria um sinal inequívoco de civilidade, um sinal bem claro de um mundo mais justo para com o ser humano enquanto agente produtivo.

Até hoje estou para perceber se estes arrufos contra o “dumping social” são genuínos. Gostava de saber se as pessoas que se agarram a um putativo dever de consciência para denunciar tais situações o fazem de forma desinteressada, ou se são motivadas por outros interesses que se escondem neste pretexto. No primeiro caso, temos aqueles líricos que acreditam piamente que a justiça social (no que quer que isso signifique) se pode estender num manto uniforme aos quatro cantos do planeta. Independentemente de diferentes hábitos, de diferentes condições estruturais, sabendo que ambas as realidades se movem contra a possibilidade de se ter nos países asiáticos e africanos a mesma bitola de justiça social que é empregue no mundo ocidental.

Num mundo tão diverso, com uma acentuada diferença de costumes sociais, é intrigante como se pode ter a ambição de estender padrões uniformes a todo o mundo. Como se a bitola pela qual nos aferimos no ocidente fosse necessariamente aplicada noutras paragens, mesmo quando a idiossincrasia destes locais é suficiente para negar a aplicação desses padrões. É a tendência etnocêntrica que domina o mundo contemporâneo, um dos seus grandes males.

Para além desta cegueira etnocêntrica, muitos dos defensores da eticidade mundial agarram-se a interesses próprios para erguer o dedo acusador contra o “dumping social”. Porque, afinal, é na base do “dumping social” que os PVD beneficiam de uma posição favorável a expensas dos países mais ricos. Falta saber até que ponto são genuínas as lamúrias de tantos quantos protestam contra o “dumping social”. Será porque manifestam uma honesta preocupação pelo desrespeito de garantias essenciais do ser humano? Ou apenas porque o “dumping social” penaliza a economia nacional? Aqui vem à superfície uma inconfessada hipocrisia que atenta contra a ambição de quem patrocina uma consciência social uniforme.

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