No meio da discussão alimentada a propósito da ficção do voto em branco (Saramago), muito se tem argumentado a propósito desta opção. Pelo caminho, alguns têm feito considerações menos abonatórias à abstenção. Mas se o que está em causa é o apelo ao voto em branco, porque motivo trazer para a discussão a abstenção?
Certos pensadores da praça pública têm destilado o veneno contra a abstenção. Tem-se dito que é a opção dos que são contra o regime democrático. Outros tecem uma generalização diferente: quem se abstém são os preguiçosos, os que preferem um dia bem passado na praia ao supremo incómodo de se dirigirem a uma mesa de voto. A ladainha não tem fim. Os abstencionistas são apontados a dedo como os irresponsáveis que trazem o regime democrático pelas ruas da amargura. Desde que Soares foi reeleito para presidente da república, todos os presidentes têm sido eleitos com um número de votos inferior ao número dos abstencionistas. O que é, na maneira de ver destes arautos da democracia, um sério motivo de preocupação.
Fico aturdido com a queda para a generalização dos adversários da abstenção. Como é possível deitarem-se a adivinhar o significado da abstenção se nunca houve o mínimo esforço para, numa investigação séria, se indagar porque os abstencionistas preferem não ir a votos? Para os que dissertam sobre as putativas causas da abstenção, as conclusões não passam de presságios sem rigor. Tudo se resume a uma interpretação pessoal do que, no seu entendimento, concorre para que milhões de eleitores prefiram não exercer o seu direito de voto.
É um método falacioso. Adivinhar o que vai na cabeça das outras pessoas é uma tarefa delicada, mais própria dos bruxos de serviço que tentam salvar o Vitória de Guimarães de ir parar à segunda divisão. É intelectualmente desonesto avaliarmos o comportamento dos outros usando os nossos padrões mentais como bitola. Na maior parte das vezes, o resultado é uma asneira de todo o tamanho.
Ao contrário destes críticos, não vou tentar fazer extrapolações do meu comportamento para compreender o significado da abstenção. Apenas digo que sou um abstencionista militante como manifestação do meu descontentamento pelo sistema político. Por desagrado com a qualidade da governação, contra o medíocre desempenho da totalidade da classe política (governos e oposições, sem distinções, a todo o tempo). Não me revejo no comportamento abúlico de uma grande parte da população, também ela insatisfeita com o que a rodeia. Ainda que, eleição atrás de eleição, estas pessoas decidam colocar o seu voto no “mal menor”. Como se sentissem que se estão a desonerar de uma responsabilidade que advém de um dever de cidadania.
Sou abstencionista como um acto de protesto contra o regime. Sei que isto pode ser interpretado como uma intolerável manifestação anti-democrática. Não vou aqui contestar esse juízo (apesar de ser objecto de contestação). O voto é um acto individual, não um imperativo de consciência que nos leva a descarregar um dever social. Mal de nós se fossemos interiormente coagidos a votar apenas para nos libertarmos da carga social que sentimos se o não fizéssemos. O direito de voto tornar-se-ia numa inadmissível intromissão na esfera privada de cada indivíduo. Seria (mais uma) manifestação de como a liberdade individual, tão apregoada, é afinal condicionada pelos deveres de participação social que se impõem sobre cada indivíduo.
Melhor seria que os críticos da abstenção fizessem duas coisas. Primeiro, que respeitassem a vontade de quem se abstém. Da mesma forma que respeitam quem vota em branco, ou nos partidos A, B, ou C. Segundo, que patrocinassem uma investigação séria ao significado da abstenção. Talvez não lhes seja conveniente. Suspeito que os resultados não seriam nada simpáticos para a classe política. Levar a sério este exercício interpretativo da abstenção (sem a leviandade que é hoje dominante) seria um forte abalo telúrico para o sistema político.
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