1.4.04

A barbárie servida à hora do jantar

Acabava de chegar a casa. A televisão tinha sido ligada, estando sintonizada na TVI. Àquela hora passava o interminável noticiário nocturno. Sem aviso, apanhei a meio a reportagem que dava conta do mais recente ataque a soldados dos Estados Unidos estacionados no Iraque. Sem novidade. Desde que os Estados Unidos e seus aliados pousaram no Iraque não chega a passar um dia sem que sejam conhecidas baixas entre os seus militares. A novidade estava nas filmagens feitas após o ataque que ceifou a vida a quatro soldados.

Numa orgia de terror, num estrépito de insólita violência, dezenas de iraquianos deliciaram-se a profanar os cadáveres dos infelizes soldados. As imagens que vi, nuns breves segundos, tiveram uma intensidade tal que valeram por longos e angustiantes minutos. Imagens de cadáveres desfigurados, mutilados, meio carbonizados, vitoriosamente arrastados por uma multidão em delírio. Num esgar de contentamento pelas vidas que tinham deixado de existir, aquelas dezenas de iraquianos espumavam a sua revolta num longo grito de júbilo. Empunhavam os corpos destroçados de pessoas que minutos antes eram seres vivos, tal como eles, seus carrascos pós-morte, o eram naquele momento.

Imagens tenebrosas, com os restos mortais irreconhecíveis a serem ultrajados num arrepiante laivo colectivo de loucura. Como se a vida fosse uma minudência menosprezável. Choquei-me ao ver como os restos dos corpos de quatro pessoas eram violentados sem contemplações, desenhando o seu destino. É o preço da guerra, de qualquer estúpida guerra que leva o sacrifício da vida aos locais por onde ela se espalha.

Os mais cínicos poderão dizer que é o preço que os Estados Unidos estão a pagar pelo seu expansionismo militarista. Perante os horripilantes acontecimentos narrados pelas imagens, não me interessa saber se há ou não razão nesse juízo. Por maior que seja a antipatia que nutro pelos exercícios bélicos que pretendem exprimir a superioridade mundial dos Estados Unidos, não consigo relacionar com desdém esse messianismo moderno com o que se passou ontem algures no Iraque.

Foram imagens que me custaram a sair da cabeça. Foram comigo para a cama e foram elas que demoraram o sono. Como ignorar o esquartejamento público dos cadáveres, o festim com as várias partes dos corpos dilacerados, a sua exposição pública como troféus hasteados em postes de electricidade?

Não me recordo de ver imagens tão violentas e deploráveis como estas. O que me leva a indagar se a responsabilidade informativa que pesa sobre os ombros dos meios de comunicação social (em especial os que se servem da imagem como veículo) não deve obedecer a imperativos de recato quando as imagens testemunham semelhante violência gratuita e ensandecida. Não devia imperar um dever de responsabilidade em todas as televisões, levando-as a uma auto-censura em nome de princípios mínimos que são caros à dignidade do ser humano?

A opção foi a contrária. A de expor os corpos de soldados anónimos, mas afinal seres humanos a quem tinha sido roubada a vida de uma forma tão violenta. Como se fossem meras coisas (pois eram assim tratados pelos abjectos carrascos), prevaleceu o direito à informação que, hoje, é tantas vezes sinónimo de satisfação dos desejos mórbidos da audiência.

Agora percebe-se melhor o acto tresloucado dos iraquianos. Não vejo grande diferença entre quem é o autor material da barbárie que nos foi servida à hora do jantar e as pessoas que, enquanto veículos da informação e seus destinatários, se comprazem com essas imagens.

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