16.4.04

O mendigo residente

Já me cruzei com ele várias vezes. Escondido por detrás de uma barba farfalhuda e desgrenhada, não sei dizer que idade aparenta. Que tem um aspecto envelhecido, disso não tenho dúvida. Só não sei se esse aspecto revela a sua idade real. Causticado pelas agruras da vida, quem sabe se a aparência o torna mais velho do que realmente é.

Transporta a sua figura demencial pelas ruas das redondezas. Numa deambulação sem nexo – ou que só para ele terá nexo – erra pelas ruas balbuciando palavras sem sentido. O seu ar pouco amigável afasta as pessoas. Por vezes nota-se um esgar de agressividade que leva as velhinhas a fugir dele, alarmadas pela figura andrajosa que arrasta os seus farrapos esburacados.

Nunca o vi a mendigar. O que parece um paradoxo. Lembro-me, uma vez, que recusou uma esmola de uma senhora que passava. Descansava no beiral de uma porta, numa pose própria de quem está a suplicar pela caridade alheia. É certo que não estava de mão estendida, nem sequer disparava aos passeantes pedidos de clemência para a sua situação miserável. Não se lhe ouviam palavras solicitando esmola. A senhora decidiu substituir-se às suas súplicas, acossada por um impulso para satisfazer um imperativo da sua (boa) consciência. As moedas que lhe estendeu foram vigorosamente recusadas. Perante a insistência da caridosa senhora, o mendigo indignou-se e, num atropelo de palavras sem sentido, recusou a oferta com um esgar de agressividade.

Recordo-me, noutra ocasião, deste mendigo sair de um café com um cigarro na boca, recém-acendido. Mal transpôs as portas do café desembainhou um pequeno giz do bolso do seu casaco e, olhando para todos os quadrantes que o olhar alcançava, ajoelhou-se e traçou uma cruz no passeio, mesmo à entrada do café. Seria a sua bússola privativa? O sinal de que naquele local havia alguém pronto a fazer a caridade de que ele procurava, oferecendo o tabaco de que necessita?

Ontem lá estava ele, jazendo num descanso do seu errático vaguear. Importunado pelo cansaço de uma jornada que já ia longa (a tarde chegava ao fim), recostava-se na portada de uma loja. Observava quem passava, com um olhar meio desequilibrado, com o esfusiante entusiasmo de quem via as pessoas que iam e vinham com a normalidade dos dias que passam. Uma normalidade com diferentes significados. Para os passeantes e para ele, mendigo, feliz por não ser assoberbado pela rotina que aflige aquelas pessoas normais.

Já me habituei a ver no mendigo poses desconcertantes. Ontem voltou-me a surpreender. Nestes dias do início da primavera, em que o tempo vai mudando e os primeiros dias de temperatura agradável se misturam com noites ainda frias, muitas vezes não sabemos se vestimos roupa ligeira ou se ainda recorremos a um agasalho. O mendigo era testemunha desta difícil simbiose. Trajava uma gabardina que nos seus tempos de glória teria sido um exemplar garboso. Agora estava desgastada pelo tempo que a corroeu e pelo descuido propositado do mendigo, que a encharcava de nódoas e a coçava de negrume. Por baixo da gabardina duas camisolas deslaçadas, fios soltos dela revelando que os seus antigos donos as tinham retirado de circulação. Estas vestes próprias de quem sente frio eram coroadas com uns chinelos que desnudavam os pés cansados, envelhecidos e mal tratados. Expondo-os ao frio que era, no entanto, abrigado no resto do corpo.

Esta figura enigmática, quem sabe se atormentada pela demência, intriga-me a cada vez que o vejo. Ponho-me a imaginar a construção do mundo que diariamente representa na sua cabeça. E tento perceber como as mesmas coisas que todos vemos podem ter um significado tão diferente para outras pessoas.

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