Ontem, domingo de Páscoa, em pouco mais de meia hora vi o compasso por três vezes. Não sei se foi uma notável coincidência. Em anos anteriores não me recordo de em tão curto espaço de tempo me ter cruzado tantas vezes, em plena cidade, com o cortejo pascal. Se calhar há coincidência em ambas as coisas: no que aconteceu este ano, e no facto de em anos anteriores nunca se ter dado o acaso de ter visto pessoas trajadas transportando a cruz pela rua fora.
Lembro-me da primeira vez que vi este cortejo, e da ignorância que revelei em público. Foi há treze anos. Ia de autocarro do Porto para o aeroporto de Vigo com os meus colegas da universidade, para a nossa viagem de finalistas. Antes da Póvoa de Varzim, na velha estrada que fazia a ligação entre o Porto e Valença do Minho, o autocarro abrandou para permitir que meia dúzia de transeuntes atravessassem a estrada. De ambos os lados da estrada, às portas das casas, as pessoas esperavam por algo, envergando a sua mais janota fatiota.
Atravessando a estrada lá iam as cinco ou seis pessoas, trajando uma túnica branca até aos pés. Um deles carregava uma cruz. Na ignorância própria de um rapaz nascido e criado na grande urbe, onde nunca tal exibição religiosa tinha sido testemunhada, perguntei aos demais o que era aquilo. Os que estavam mais perto de mim ficaram admirados com a minha ignorância, e lá fizeram o favor de me explicar o que se estava a passar diante dos meus olhos.
Treze anos passados, já dou de caras com o compasso em plena cidade. Pus-me a pensar se o fenómeno terá algum significado especial. Descontando a possibilidade de se tratar de uma coincidência, inquiri-me se a frequência com que me cruzei com os cortejos pascais significa um revigoramento dos rituais católicos, como se a fé das pessoas esteja a tonificar-se. Na hipótese da resposta ser afirmativa, outra questão me assaltou de imediato: como se compatibiliza esta conclusão com a tendência, assumida em círculos da hierarquia eclesiástica, de que as pessoas estão cada vez mais distantes da religião? Algo não batia certo.
Talvez a resposta para a inusitada frequência do compasso em plena cidade se encontre na própria crise que a fé católica atravessa. Imersa na crise, reconhecendo o afastamento que as pessoas vão, numa escala crescente, votando a religião, a igreja sente a necessidade de apelar aos valores do passado para tentar reconquistar almas que se vão perdendo nas trevas. Os ritos do passado são um factor de identificação colectiva que têm o condão, quando incorporados por muitas pessoas, de as fazer regressar em massa ao que a sociedade era em tempos remotos.
Será esta a explicação para ver hoje o que não via há mais de dez anos nas ruas do Porto? A disseminação do compasso como um sinal da crise do catolicismo. Como se fosse um balão de oxigénio a tentar a sobrevivência de uma fé que vai perdendo os seus rastos com a passagem do tempo.
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