Espero à porta do supermercado. Diante dos meus olhos dois ensaios de pobreza despertam a atenção. Ao dobrar a esquina, logo à saída do supermercado, um negro esguio, na casa dos vinte e poucos anos, espera pelos passeantes que entram e saem no supermercado, encostado na porta de um cabeleireiro. Balbucia algo só a algumas pessoas que com ele se cruzam. Só ao fim de algum tempo percebo que se trata de um pedinte, quando um homem carregado de sacos interrompe a marcha e com um ar resignado vasculha uns trocos na algibeira. O homem volta costas e o pedinte conta as moedas. À distância não consegui perceber qual teria sido a maquia oferecida. Pelo sorriso esboçado pelo pedinte, deve ter sido uma esmola generosa.
Uns metros mais à frente dois vultos vasculham nos latões do lixo. A penumbra do fim da tarde não me deixa desenhar com nitidez as pessoas que abriam e fechavam as tampas dos contentores verdes. Não consegui perceber se eram jovens ou velhos, se tinham ar de portugueses ou se eram cidadãos de leste. Apenas dois vultos incógnitos que se rebaixavam num acto de humilhação que para eles tinha outro significado – um acto de busca desesperada por algo de valioso.
De repente, à frente dos meus olhos passaram vertiginosas imagens do sofrimento que percorre aquelas almas penadas que pediam a indulgência de quem por eles passava (o jovem negro) e que, em desespero, procuravam um tesouro qualquer nos contentores do lixo. Chocou-me mais ver os dois vultos anónimos a mergulharem com voracidade para dentro dos contentores, com as mãos desnudadas, num estado de necessidade aflitivo. Um quadro pintado a negro, com uma densidade de chumbo que por largos minutos não me quis abandonar.
Bem sei, para os que conhecem a minha “insensibilidade social”, que o retrato e a reacção constituem uma surpresa. Mas não há bela sem senão. Aos que estavam espantados pela revelação desta faceta desconhecida (ao confessar o incómodo que esta pobreza me suscita), vem agora a o reverso da medalha. À questão, “o que fazer com esta pobreza?”, a resposta mais óbvia é a de reclamar uma atitude mais construtiva, mais permanente, mais activa da sociedade.
Discordo. Não é uma competência da sociedade. Quando se reivindica uma responsabilização colectiva, através dessa coisa abstracta chamada “sociedade”, o que temos pela frente é um acto de desresponsabilização individual. Como se cada um de nós sentisse que nada pode fazer perante os chocantes fenómenos de pobreza. Atirar esta responsabilidade para a sociedade mais não é do que a confissão individual de impotência para algo fazer contra a pobreza. Impotência, incapacidade, ou simples indisponibilidade – tudo se encerra no mesmo diagnóstico de demissão individual. Como se a sociedade fizesse os milagres que a sequência de indivíduos não é capaz de fazer.
Continuo a pensar que o combate eficaz à pobreza vem de um impulso nascido dentro de cada indivíduo, num contributo para erradicar os focos de pobreza (quando elas não são voluntárias). Pensar que a sociedade se pode substituir a cada indivíduo nesta tarefa é um misto de hipocrisia e de lirismo. Mais importante do que organizar a sociedade no combate à pobreza, na crença de que a reunião de esforços é a melhor via para extirpar a pobreza, é um acto de consciência individual que leve cada pessoa a fazer aquilo que acha de que deve fazer.
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