Andava perto do local onde passei a maior parte da minha vida, um parque amplo e verdejante nas imediações daquela que foi a casa dos meus pais por mais de trinta anos. De repente vi o senhor Vieira, em passo lento, mãos atrás das costas, a passear os seus dois pequenos cães. Lembrei-me de um dos episódios mais caricatos que vivi durante os mais de vinte anos que habitei naquele local: o bacalhau perdido do Vieira.
Vieira é a antítese do boneco cómico. Sempre carrancudo, exibindo um ar de poucos amigos, não o vejo dotado de um grande sentido de humor. Contudo, num dia próximo do natal, Vieira protagonizou um incidente digno da melhor rábula humorística. Tudo por causa de um bacalhau que se havia evaporado à porta do elevador.
Vieira tinha ido às compras. Como o natal já não estava distante, o cabaz de compras incluía os ingredientes necessários para as iguarias da época. Entre elas um garboso bacalhau, de generoso porte. Não tendo conseguido encaixar tudo no elevador à primeira tentativa, alguns víveres tiveram que aguardar no rés-do-chão à espera de segunda viagem. O infeliz bacalhau teve que esperar para fazer a viagem até ao 13ºandar. Quando Vieira desceu ao rés-do-chão, os mantimentos que estavam à espera de transporte já não estavam intactos. O bacalhau tinha desaparecido, para desgosto e ira do desafortunado Vieira.
No mesmo dia um aviso estava afixado à entrada do prédio. Com a assinatura de Vieira, tinha (cito-o de memória) o seguinte apelo: “a quem encontrou um bacalhau perdido, é favor devolver no 13ºD”. Li e não pude evitar uma sonora gargalhada.
O bacalhau, portanto, perdeu-se. Ainda hoje estou para perceber se Vieira escreveu aquele aviso invadido por uma ingenuidade indomável, ou se foi acometido por uma deliciosa ironia. Fiquei sem compreender se Vieira acreditou que o bacalhau tivesse dado às barbatanas e se escapulisse para outras paragens, por ajuizar que a família de Vieira não era merecedora de o aconchegar no estômago. Ou se, pelo contrário, Vieira estava ciente de que um vizinho menos escrupuloso não teria resistido à beleza do bacalhau. E, fazendo contas à vida, esse vizinho sem remorsos concluiu que abarbatar aquele magnífico espécime significava uma poupança de uns contos largos.
Encarar este furto com o desportivismo com que Vieira o fez é não é para qualquer um. Ao adivinhar que o bacalhau “desapareceu”, enviou um sinal claro ao meliante. Como quem diz, “senhor vizinho-ladrão, veja que eu escrevi a coisa de uma forma mais simpática. Agora veja lá se tem um rebate de consciência e devolve aquilo que não é seu”.
Não tenho a certeza se a ingenuidade supera o humor cáustico de Vieira quando ele manifestou a sua expectativa de que o bacalhau aparecesse, milagrosamente, à porta da sua casa, depois do arrependimento do ladrão de ocasião. Para Vieira ter feito este apelo, é porque esperava que a sua mensagem pudesse atingir o coração mais ou menos empedernido do gatuno de serviço que desviou o bacalhau do 13ºD para qualquer outro andar.
Que haja notícia, o bacalhau foi mesmo parar à mesa de outro vizinho…
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