23.4.04

Divagação sobre os tradutores televisivos para surdos

Sentado à mesa de um restaurante, sobre a minha direita, ao alto, repousa uma televisão. Nos minutos que antecedem o almoço, desvio o olhar para as imagens transmitidas. Era um daqueles programas de entretenimento que os canais nacionais passam antes do noticiário das 13 horas. Daqueles que entretêm sobretudo as velhinhas que olham para os Gouchas, os Figueiras, os Jorges Gabriéis e delfins que vão pululando em busca do estrelato, como os filhinhos (ou os netinhos) que tanto gostariam de ter mas que a natureza, madrasta, não lhes quis ofertar.

Já faltavam pouco minutos para começar o bloco de notícias. No televisor sem som, o apresentador do programa dá as boas vindas a um cómico que vai fazer a sua rábula. Quis agradecer aos donos do restaurante por terem mutilado o som. Por me terem poupado ao chorrilho de disparates deste representante da nova leva de humoristas (pesudo-humoristas) que se acha detentor de um sentido de humor inexcedível. Ou talvez seja o meu sentido de humor que nesse dia estava pelas ruas da amargura. Duvido. Como não estava a beber vinho verde, o azedume pelo humorista de serviço não era fruto da acidez vínica.

O canto inferior direito do ecrã chama-me a atenção. Neste canal, o programa matinal recorre a uma tradutora para surdos. Medida louvável, decerto. E politicamente correcta, porque afinal também há avozinhas surdas que têm o mesmo direito de sonhar com os filhinhos e netinhos projectados no seu imaginário. Depois começou o espectáculo. O som estava em baixo, produzindo o efeito balsâmico de me poupar à asneirada do cómico. Escapei ao mau gosto das piadas de caserna, mas não pude evitar as imagens. Recorrendo abundantemente à mímica, o pseudo-humorista esbracejava, esperneava, fazia caretas que levavam o público à gargalhada quase asfixiante.

Mas não era este desempenho que chamava a minha atenção. Era o esforço da tradutora para surdos. Ela tentava acompanhar o ritmo do cómico. Não sei se inebriada pela comicidade do acto, também saltava na cadeira, os seus gestos eram mais enérgicos, as caretas revelavam uma expressividade que pôs o jovem cómico na penumbra. Deliciei-me com o espectáculo dado pela tradutora. Esse foi o momento alto dos poucos minutos do programa a que assisti.

Imagino o esforço sobre-humano que ela não terá feito. Não bastava a linguagem gestual que tem que ser expressiva para que a mensagem chegue aos destinatários. Naquele caso, para melhor reproduzir a performance do cómico, a tradutora teve que se transfigurar. Deixou de ser uma personagem que passa despercebida a quem já se habituou à sua presença. Como a sua tradução não me é destinada, o canto inferior direito é banido do meu campo visual. Não foi o que se passou naquela altura. Aí a televisão resumia-se ao canto inferior direito.

Depois da excitação do momento, dei comigo a pensar noutras ocasiões em que a tradução por linguagem gestual podia ser utilizada. Por exemplo, em filmes pornográficos. A tarefa dos tradutores para surdos seria paradoxalmente fácil e difícil. Fácil porque os argumentos destes filmes são, por norma, bastante simples. Os diálogos não se alongam e não são elaborados. As reflexões filosóficas não têm aqui o seu campo de eleição. Por outro lado, seria um exercício difícil. Como traduzir sons, gemidos e grunhidos abundantemente emitidos pelos intervenientes?

Lamentavelmente, aqui nada pode ser feito em favor dos surdos. Eles perdem grande parte do sumo dos filmes pornográficos, por impossibilidade de reprodução, em linguagem gestual, dos sons que são a essência destes filmes.

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