27.4.04

Que lógica nas condecorações do 25 de Abril?

Ontem decorreu a liturgia oficial do regime, num acto cheio de solenidade. Mais uma dúzia de patriotas e de servidores da causa da liberdade receberam, das mãos do senhor presidente da república, insígnias a demonstrar a gratidão da nação pelos serviços prestados. Este ano, mais do que em anos anteriores, a polémica estalou o verniz. Uma das agraciadas foi a Dra. Isabel do Carmo, conhecida não pela medicina que hoje pratica mas pelo terror das bombas que ela e o seu companheiro Carlos Antunes colocaram em nome de uma coisa chamada Partido Revolucionário Português (PRP).

De acordo com o enésimo discurso intragável de Sampaio, estas condecorações convocam à reconciliação do país. Em nome dos trinta anos de liberdade, anteontem festejados. Reconciliação, adivinho, disse-o ao pensar especialmente no caso das insígnias oferecidas a Isabel do Carmo. Como se fosse possível que as vítimas das bombas espalhadas pelo duo do PRP passassem uma esponja no passado e, num acto de magnanimidade, perdoassem quem estupidamente cometeu estes actos criminosos.

Sampaio tem um grave problema de perspectiva. Ao querer aparecer como o grande pacificador, o homem de “consensos”, o semeador da “serenidade”, nem se dá conta que faz tábua rasa dos mais elementares direitos de quem foi afectado pelo terrorismo do passado. É difícil aceitar que em nome de uma qualquer forçada reconciliação, “só porque” o 25 de Abril fez trinta anos, quem sofreu na carne as agruras do terrorismo do PREC seja agora forçado a perdoar. Apenas porque sua eminência, o presidente da república, sentenciou a necessidade do país se reconciliar. Mas reconciliar com o quê, afinal? Será que vivemos espartilhados pelo peso insustentável do passado? Somos uma sociedade dividida e em permanente conflito, para se apelar a esta reconciliação?

A exibição folclórica de ontem vem provar várias coisas ao mesmo tempo. Vem provar, em primeiro lugar, que Sampaio é um péssimo presidente. Quando certas feridas estão quase a sarar, encasuladas numa cicatriz que quase fecha, eis que o presidente da república se mexe e provoca ondas de choque que abrem novamente a ferida. Com a sede de protagonismo que tem, Sampaio não para de disparar no próprio pé.

Segundo, espera-se que Sampaio dê a mão à palmatória e prometa que, no próximo ano, será um destacado membro do Exército de Libertação de Portugal (ELP) a merecer a honra que este ano coube a Isabel do Carmo. Para não resvalar para um viés esquerdista (que acaba sempre por vir à superfície), era bom que Sampaio, afinal o grande pacificador, não se esquecesse que também houve bombistas de extrema-direita que merecem a mesma honraria que coube a Isabel do Carmo. De outro modo, está ferido um sagrado princípio de igualdade.

Terceiro, há algo que me intriga: para além das bombas que plantou aqui e ali, quais foram os serviços prestados à liberdade por Isabel do Carmo? Seriam as bombas, que atentaram contra bens e pessoas, assim ferindo de morte…a liberdade individual dos afectados? Seria o modelo de sociedade que a senhora preconizava, através do PRP? Insondável paradoxo, que fica a gravitar em torno de Sampaio.

Quarto, o episódio é ilustrativo do calibre destas condecorações. A república está num nível muito baixo, com a distribuição de comendas a fazer-se de acordo com critérios duvidosos. O nivelamento está pelas ruas da amargura, o que, bem vistas as coisas, me enche de contentamento. Quanto mais patéticas forem estas manifestações que pretendem congregar a “unidade da nação”, mais a sua inutilidade se revela com clareza.

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