9.12.14

Tio (s. m.): irmão da mãe ou do pai

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De um modismo (pelo menos, entre as pessoas muito em moda): toda a gente um pouco mais velha é, para os mais novos, “tio” ou “tia”. Ignoram-se os laços de sangue que autorizam o tratamento. Mas não interessa. É um afeto que se atira para cima dos mais velhos quando recebem o tratamento de “tio” ou “tia”. Ou apenas uma afeção de linguagem. Aliás, o dicionário (e, ao que se percebe, as convenções) já aderiu ao modismo. Abre-se o dicionário em demanda do vocábulo e aparece, na terceira linha, o significado “social”: “forma de tratamento usada por vezes para os amigos da família mais velhos”.
Nada contra o enriquecimento do vocabulário. Aliás, suponho que os adeptos do relativismo epistemológico (nada contra, por igual) aplaudem a abertura etimológica: pois as palavras podem encerrar diferentes significados em diferentes contextos e, sobretudo, consoante a vontade de quem as empunha. A gente bem posta, nata da nata do veículo social, entronizou esta forma de tratamento. É lá com eles. Eu, que tenho duas costelas relativistas e sou adepto da variedade etimológica que enriquece o vocabulário, tenho – devo confessá-lo – urticária quando noto tanto “tio” à minha volta. Até hoje, nunca fui destinatário do tratamento, o que me enche duplamente de contentamento: os sinais de envelhecimento ainda não me vieram visitar e não tenho ar de quem pertence (ou se julga pertencer) à “elite social”. As duas corroborações são um bálsamo para o sono.
Juro que não é conservadorismo. Nem preconceito social (ou até sociopatia específica conta os putativos membros da “elite social”). Só o rigor das palavras e o seu significado, mesmo que contextualmente flexibilizado, obriga-me a coçar as orelhas quando uma palavra é proferida fora do contexto que a autoriza. Há os pontapés na gramática, as lesões à sintaxe, ou o desconhecimento do significado de palavras que levam os seus autores a atropelarem o idioma que dominam (mal). Há uns anos, um conhecido agente desportivo, ao querer falar com pergaminhos de intelectual e, portanto, puxando lustro ao vocabulário erudito, usou a palavra “handicap” julgando que significava vantagem. Tudo isso se corrige com ensinamento e aquisição de conhecimentos. E há as palavras que não fazem sentido, porque a natureza lhes denega o sentido imputado. Isso é pior.
Ficaria irritado se alguém me tratasse por “tio”. Pelas razões aduzidas lá atrás. E quando alguém trata por “tio”, suponho que não se ensaie para estender o tratamento e da boca soltar-se a palavra “pai”. Ora sabendo que os meus espermatozoides não contribuíram para o produto final (que mete na boca a palavra “pai”), também o tratamento por “tio” é abusivo: porque se intui que um avó andou a gastar espermatozoides fora do matrimónio (ou que uma avó andou a recebê-los sem ser do consorte benzido por deus).
Já não há respeito pela intimidade das pessoas.
(Ou: é a vulgarização das palavras que patrocina a promiscuidade etimológica, a tal ponto de o dicionário reconhecer que “tio”, em sentido coloquial, corresponde a “uma pessoa geralmente da camada social elevada e que se comporta de forma afetada.”)

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