10.12.14

Andarás sobre as cinzas

Depeche Mode, "Personal Jesus", in https://www.youtube.com/watch?v=u1xrNaTO1bI
Um guru ensina as almas a terem domínio sobre os espíritos que nelas habitam. O guru é escutado com adoração. As almas ali presentes, que querem romper as grilhetas que as atam a vontades alheias, bebem as palavras do guru. Como se fosse um deus. Acenam meticulosamente com a cabeça à medida que a pregação do guru se desembrulha. Na exaltação do raciocínio, o guru pede aos seguidores para serem entidades por dentro de si mesmas. Não se devem acomodar às arestas vivas e traiçoeiras que são os outros que se metem pelo caminho. Só é pena os seguidores não levarem até ao fim o conselho do guru. Porventura, o guru deixaria de cobrar fortunas pelos seus serviços. E deixaria de fazer da charlatanice forma de vida.
Para provar que os seguidores deixam de ter freios exteriores, o guru encenou a ceia num descampado. Mandou uns lacaios – sempre mudos, sempre obedientes – preparar um caminho feito com brasas de uma fogueira. O caminho era a fogueira que fora ateada para esse propósito. Os seguidores amesendam no chão, em pose de ioga, e comem com as mãos. Comida macrobiótica, que o culto do espírito começa pelo que se atira para dentro do bucho. Encantados com o lugar, com o luar que parecia propositadamente semeado pelo guru (os aprisionados dentro de tamanho transe acreditavam na patranha), com as delícias do repasto sensaborão, nem repararam que nas traseiras do lugar estava a vereda que se incensava na fogueira que já era só cinzas.
A sobremesa não era um doce. Os seguidores da seita despojar-se-iam do calçado para irem ao caminho abraseado. Antes, o guru engenhou sermão de convencimento mental: tudo é possível, assim o queiram as vontades que fluem no interior das mentes esbulhadas de freios. Se ele diz que conseguem caminhar em cima das brasas, é porque conseguem. Só faltou dizê-lo com timbre bíblico: “andarás sobre as cinzas”. Os seguidores, qual manada bovina desapossada de livre arbítrio, começaram a descalçar-se. Um a um. E a caminharem, sem esgar de dor, em cima das cinzas ainda abraseadas.
Ao fim da noite, o contingente de médicos e enfermeiros no hospital das imediações foi reforçado. Não havia braços que chegassem para curar tantas queimaduras nos pés. Do guru, notícias três semanas depois. Foi encontrado num aldeamento turístico de luxo no Brasil, na companhia de umas mulatas curvilíneas, a açambarcar um churrasco gaúcho bem regado pelos melhores vinhos. E a dizer, de si para quem houvesse de o ouvir, “olha para o que eu digo, não olhes para o que faço”.

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