17.12.14

Morangos deletérios


Pascal Comelade & P. J. Harvey, "Love Too Soon", in https://www.youtube.com/watch?v=Z87cA1c3M50
Os beijos espontâneos não eram o ardor de outrora. O olhar era desviado. As mãos, frias. As palavras vazias. O tempo suspenso. As árvores, decadentes; como se sobre elas houvesse pousado criatura destruidora. A névoa ao entardecer fazia soar os sinos da decadência. Tudo era um arremedo de nada. Os rostos, todos iguais. As palavras, sem sentido, como se já nem estivesse por dentro do idioma mátrio. As mãos desciam às águas profundas, de onde vinham lavadas em lágrimas. A nostalgia não tinha preço, a não ser as cicatrizes que demoravam a dor. E, contudo, não conseguia ser misericordiosa consigo mesmo. Entregava-se num campo de batalha onde as pernas se atropelavam todas, onde não havia sentido de despojamento do ser, onde cada um soerguia a cabeça nem que para tal tivesse de meter a mão na cabeça do mais próximo. Às vezes julgava ser apenas uma sombra dentro de uma miragem. Adormecia tarde. Cansada, depois de o sono lutar contra ela e a insónia estender os lençóis para fora da cama. Adormecia tarde e contava as lágrimas que derramava por fora da almofada. Quando sentia o coração esvanecer, sabia que se destrancavam as portas do sono. E que na imersão do sono viriam à boca de cena sonhos que desmentiam todo o tempo em que os olhos andavam em demanda. Esse era um tempo vão. Um chão trémulo sobre o qual os pés escorregavam. De tantas quedas estrepitosas, de tantas proclamações solenes que, depois, não passavam de extemporâneas encenações, ao menos sobravam os sonhos. Tudo podia ser cedo de mais, como depois do tempo passado dele podiam sobrar os vestígios de um entardecer sem remédio. E sabia: que ao menos nos sonhos não era comandante da frágil embarcação que era. Não tinha de apanhar os morangos dos campos frondosos e depois cair doente por estarem embebidos em veneno.

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