18.12.14

Inquérito à etiqueta


Art Department (presents Martina Topley-Bird and Mark Lanegan), "Crystalised", in https://www.youtube.com/watch?v=-zLEI9oEHwI
Um arroto sonoro no fim do repasto. Um escarro avantajado que emporcalha as ruas. O dedo mindinho com proeminente unha a enfiar-se na cavidade nasal para a desobstruir de cera. A flatulência, audível ou soporífera, que traz um naco de poluição ao ar adjacente. O boçal que come à mesa do restaurante com tamanha voracidade que – dir-se-ia – não comer há um par de dias. O cavalheiro nada cavalheiro que não cede a passagem à senhora que vinha a seguir. Os meninos em perfeita algazarra no restaurante, incomodando os demais. A senhora ladina que foi à casa de chá e se esqueceu de dirigir o dedo mindinho ao céu enquanto levava a xícara à boca. O funcionário público que demora na função e se enfeita de trombas quando atende os utentes. A figura pública que se põe em modo grosseiro com os jornalistas ao ser interpelado depois de visitar um “grande amigo” na prisão. O vernáculo trivial em substituição de sinais gramaticais. A genética falta de sentido de humor. O esteta que já não toma banho há sabe-se lá quanto tempo. Os rapazolas que no comboio zurzem uma (dizem eles) aberração que teve o topete de estacionar perto deles. O “não tio” que insiste em cumprimentar a “tia” com um par de ósculos nas faces, deixando-a sem jeito ao dobrar do ósculo. O taxista fascista que acorda sempre na penumbra e não a larga durante a jornada. A estrela de música que recusa, com desdém, o autógrafo a um menino deficiente. A rudeza do homem do talho, que saliva raiva nos interstícios dos dentes cariados. O cliente do café que não pede o lanche, ordena e com maus modos, como se o empregado do balcão fosse seu criado. As irmãs petizes que metem os cotovelos em cima da mesa do restaurante. O comunista que palita os dentes em público. O putativo amigo que vem da deslealdade. O patrão que deprecia o trabalhador. O padre que exerce coação psicológica sobre o confessor. O cientista que tomou de assalto as ideias alheias e fê-las passar como sua descoberta. O adolescente distraído no autocarro a limpar as cavidades nasais com o dedo indicador. E os moralistas, os moralistas de que jaez seja. A metódica etiqueta: ou de como a tirania da etiqueta revela mais falta de chá do que a sua omissão.

Sem comentários: