Nick Cave and the Bad Seeds, "Higgs Bosom Blues", in https://www.youtube.com/watch?v=1GWsdqCYvgw
Nick Cave diz que os contadores de histórias oferecem
aos outros a possibilidade de serem outro. Contar uma história, ou lê-la pela
lente da subjetividade de quem a lê, é a possibilidade de saltarmos as ameias que
muram o ser e sermos outra pessoa. Ou outras pessoas, consoante achemos que
carecemos de múltiplas personalidades, numa digressão por heterónimos
imaginados que metem os pés por territórios paralelos. Não sei se será por
cansaço de quem se é, ou se é um exercício de desdobramento de personalidades
por a individual ser pequena para abraçar tanto mundo.
Mas o contador de histórias pode não ter a
necessidade de extravasar a sua personalidade, nem de imaginar, ao contar uma
história, que é outra pessoa. Os custos de se ser quem é podem ser tantos que
não há préstimo em querer ser um imaginado outro. A incógnita pode ser
assustadora: quem assegura que o outro ideado não semeia outras apoquentações,
não encontra embocadura noutras trivialidades que podem ser o ancoradouro da
personalidade outra em que fundeia? O contador de histórias pode não querer açambarcar
outras personalidades. Pode querer compreendê-las quando arremete pelo
território que lhe é desconhecido. Não é querer ser quem retrata ao narrar uma
história; será uma percepção de circunstâncias, talvez um deitar a adivinhar,
num jogo em que o talvez ocupa a posição central no tabuleiro em que se encenam
todas as peças.
O contador de histórias pode ser um observador,
limitar-se a esse papel. Com a atenção metódica de observar gestos e palavras,
ou um olhar enigmático que se disfarça numa cortina de sombras que escondem uma
constelação de sentimentos, a bondade ou a maldade ensaiadas sem trejeitos, as
cores e as formas telúricas que transpiram das paisagens, o que quer que seja.
Ao contador de histórias sobra a quimera das palavras. Das palavras que
ostentam o ouro da descrição e que deixam, em forma de legado, o impedimento
das leituras uniformes. Porque quem as lê têm diferentes querenças, diferentes
olhares diante do mesmo objeto ou sujeito representado nas palavras.
Não digo que não haja quem procure num enredo ser
quem não é, tendo na narrativa um refúgio para uma dimensão paralela. Mas o
juízo não tem valimento para todos os que se deitam a ser contadores de
histórias. A imaginação pode ser um território fértil da experiência vertida na
narrativa. O que não fermenta o desejo de experimentar o outro em cuja posição
se podia pôr ao ser narrador da história.
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