2.12.14

Contadores de histórias

Nick Cave and the Bad Seeds, "Higgs Bosom Blues", in https://www.youtube.com/watch?v=1GWsdqCYvgw
Nick Cave diz que os contadores de histórias oferecem aos outros a possibilidade de serem outro. Contar uma história, ou lê-la pela lente da subjetividade de quem a lê, é a possibilidade de saltarmos as ameias que muram o ser e sermos outra pessoa. Ou outras pessoas, consoante achemos que carecemos de múltiplas personalidades, numa digressão por heterónimos imaginados que metem os pés por territórios paralelos. Não sei se será por cansaço de quem se é, ou se é um exercício de desdobramento de personalidades por a individual ser pequena para abraçar tanto mundo.
Mas o contador de histórias pode não ter a necessidade de extravasar a sua personalidade, nem de imaginar, ao contar uma história, que é outra pessoa. Os custos de se ser quem é podem ser tantos que não há préstimo em querer ser um imaginado outro. A incógnita pode ser assustadora: quem assegura que o outro ideado não semeia outras apoquentações, não encontra embocadura noutras trivialidades que podem ser o ancoradouro da personalidade outra em que fundeia? O contador de histórias pode não querer açambarcar outras personalidades. Pode querer compreendê-las quando arremete pelo território que lhe é desconhecido. Não é querer ser quem retrata ao narrar uma história; será uma percepção de circunstâncias, talvez um deitar a adivinhar, num jogo em que o talvez ocupa a posição central no tabuleiro em que se encenam todas as peças.
O contador de histórias pode ser um observador, limitar-se a esse papel. Com a atenção metódica de observar gestos e palavras, ou um olhar enigmático que se disfarça numa cortina de sombras que escondem uma constelação de sentimentos, a bondade ou a maldade ensaiadas sem trejeitos, as cores e as formas telúricas que transpiram das paisagens, o que quer que seja. Ao contador de histórias sobra a quimera das palavras. Das palavras que ostentam o ouro da descrição e que deixam, em forma de legado, o impedimento das leituras uniformes. Porque quem as lê têm diferentes querenças, diferentes olhares diante do mesmo objeto ou sujeito representado nas palavras.
Não digo que não haja quem procure num enredo ser quem não é, tendo na narrativa um refúgio para uma dimensão paralela. Mas o juízo não tem valimento para todos os que se deitam a ser contadores de histórias. A imaginação pode ser um território fértil da experiência vertida na narrativa. O que não fermenta o desejo de experimentar o outro em cuja posição se podia pôr ao ser narrador da história.

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