12.12.14

Quando os gatos são cinzentos

The Cure, "All Cats Are Grey", in https://www.youtube.com/watch?v=lw4-NZijyfE
Nem os sentinelas de olhar aguçado conseguem perceber. Há quem tenha sentidos mais apurados. Como os gatos que se fazem pardos para poderem passar incógnitos no meio desfavorável. É como se fossem agentes secretos, ou polícias à paisana: a arte está em não lhes ser creditada atenção pelos olhos que se deitam no olhar do que acontece em redor.
Os gatos pardos andam cabisbaixos. Não que tenham vergonha. Eles exalam garbo viciante. Mas inclinam a cabeça para a frente, sabem que não devem ser denunciados pelos grandes olhos verdes cor de garrafa que contrastam com a penugem plúmbea. São artífices do disfarce, sem terem de ir ao baú das velharias resgatar andrajos que os personifiquem num ridículo arremedo de outrem. Esguios, passam sem serem notados. Não lhes custa serpentear entre as pernas dos exaltados que vociferam nas ruas atafulhadas de gente. As pessoas não olham para baixo. Muitas vêm mal. O que seria um meio perigoso, é território sagrado dos gatos pardos. Há muito lixo nas imediações, sinal de iguaria em fartote.
Na sinuosa linha da existência, os gatos pardos sabem que não podem exagerar nos mantimentos. Ficariam gordos. Ficariam menos ágeis – e a agilidade é, muitas vezes, o bisturi da sobrevivência. Aprendem a ser disciplinados. Disso depende a sua longa e única vida, que eles sabem que o mito urbano dos gatos com sete vidas é isso mesmo, um mito urbano. Como se insinuam por perto da gente, aprendem com as suas conversas. São involuntários tutores de segredos. Pois há gente que conta os seus segredos na rua, em alta voz na vez de sussurros. É como se procurassem a rua para degredo das perplexidades interiores. Talvez tenham medo que quatro paredes sejam exíguas para receber o tamanho das apoquentações. Os gatos pardos levam tanto para contar (houvesse quem os ouvisse).
À noite, confundem-se com a noite. É o seu território natural. Mas recolhem-se aos aposentos. É que anda pouca gente na rua, e os poucos que andam são pardas existências em demanda de uma luz pueril. Os gatos pardos gostam de gente diferente da sua igualha. Não para serem como eles, pois continuam fieis à sua igualha; só para saberem como é ser diferente do que são.

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