23.12.14

Mercado dos sorrisos

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Os bancos não tinham perdido serventia. O povo exultava: o capitalismo finara. Passada a exaltação do momento, quando as emoções começaram a ser refrigeradas, as ideias começaram a fazer mais sentido. Depurados os radicalismos, o povo sábio percebeu que só fazia sentido um mercado. Nesse mercado não seria trocado dinheiro, ou mercadorias de variada estirpe por dinheiro. Só seriam admitidos sorrisos.
As pessoas tinham de depositar os sorrisos num banco de ditos cujos. Seriam os sorrisos a ditar a abastança (não material, porém) dos depositantes. Os sorrisos seriam objeto de inventariação, a que se seguiria a classificação por um comité de sábios na matéria. Para as pessoas saberem o valor das diferentes estirpes de sorrisos. Uns haveriam de ser mais válidos para a troca (os mais raros). Outros seriam menos valorizados, os mais abundantes entre o povo. Para o sistema não personificar a lógica materialista do capitalismo defunto, os sorrisos mais abundantes não podiam ser prejudicados por esse atributo. O sorriso mais lhano podia ser trocado por sorrisos menos abundantes e procurados por quem quisesse experimentar o valimento de sorrisos raros.
Os sorrisos seráficos e os sorrisos cínicos, por serem a feição de sorrisos ardilosos, teriam residual valor. Os sorrisos descomprometidos, aqueles sorrisos abertos e espontâneos, captados magistralmente por câmaras fotográficas, valeriam o ouro. Os sorrisos amarelecidos, forjados à custa de tanto serem esboçados, teriam crédito à troca por sorrisos esbanjadores, eles sinónimos de despojamento completo. Os sorrisos maliciosos seriam valorizados numa base casuística: a entidade reguladora, presidida pelos maiores peritos da especialidade, teria de determinar se atrás de um sorriso malicioso se escondiam boas ou más intenções (e se, entre estas, apenas se estava a falar de lúbricas intenções, momento em que imediatamente o sorriso seria metido na categoria dos sorrisos bons).
De tanto esquadrinharem a feição dos sorrisos exteriorizados por rostos de tão diferente expressividade, perdoava-se, aos peritos da entidade reguladora do mercado dos sorrisos, que fossem rostos empedernidos, com a musculatura facial inerme e, por isso, imune ao sorriso. Seriam os únicos, na doce ditadura democrática do sorriso à força de lei, a não serem punidos por sorriso contumaz. Os cidadãos comuns teriam de andar nas ruas e na intimidade das casas a esbracejar sorrisos em sinal de próspera alegria imaterial. Sem discussão de causa, a UNESCO sentenciaria o sorriso como património imaterial da humanidade. A infelicidade passaria a ser motivo de degredo.

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