Portishead, "The Rip" (Live at Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=0RO-xP58Oo8
O tempo inteiro à frente de uma folha em
branco. Os olhos depostos na folha. A folha para onde deviam ser vertidas
palavras, umas palavras quaisquer. Mas a página teimava em ficar branca. As
palavras amontoavam-se no fio do pensamento. Depois precipitavam-se nos
escombros de um precipício, abortavam nos prolegómenos de uma intenção.
Levantou-se para ir à janela apanhar o ar
frio da madrugada. Não havia vivalma. Devia ser muito tarde. Nos olhos cansados
estavam sitiados os despojos da inconsequência. Mas o sono demorava. Parecia
esperar pelas palavras que, por aquela altura, eram timoratas. As palavras
talvez recusassem o impasse se os olhos passassem umas horas pelo sono, nem que
fosse para estorvar a fadiga. O cigarro chegava ao fim e o frio esbulhava os
ossos, sem que uma ideia aproveitável se traduzisse em palavras.
Metera na cabeça que aquela noite seria
fautora de algum texto. Um texto que fosse, sem interessar a dimensão, ou a
forma, ou até o estilo. A teimosia esbarrava na ainda mais teimosa folha em
branco. De regresso à secretária, os olhos pendiam nos vértices da folha,
pareciam entorpecidos pela serenidade da folha teimosamente láctea. Mas os
olhos não queriam capitular. O pensamento recusava a indolência desfraldada
pelo sono moroso. Haver-se-ia de ver qual das teimosias era maior: se a da
folha que não queria perder a alvura, ou a do escritor que estava de atalaia às
ideias que pudessem ser ingredientes de um texto.
Entretanto, a cabeça cambaleou um par de
vezes, quase a sucumbir ao chamamento do sono. Nem no mais profundo do
pensamento conseguia arrebatar umas palavras que fossem. A desinspiração tomara
palco. Talvez fosse do vazio que vinha de dentro. Pela primeira vez, o vazio
era caução da infecundidade do pensamento e da impossibilidade das palavras. Talvez
tivesse de reaprender tudo. Desde uma folha em branco.
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