12.9.16

Das dores silenciosas e do préstimo de viver

Nick Cave & the Bad Seeds, “Distant Sky”, in https://www.youtube.com/watch?v=xCVgsI5h9p0
Os lugares que não são fungíveis não se propõem à substituição. Todavia, há uma vida inteira lá fora à espera de ser abraçada, compulsivamente abraçada, como um faminto se agarra, com sofreguidão, ao primeiro alimento que lhe vem à boca.
O chão pode nem ser atapetado, como em planos ele se prometia: uma tela bucólica, inigualável. Os mantimentos volitivos dos outros são uma variável que não está à distância das mãos. Ainda bem. Somos seres jogados na ordem aleatória das coisas. Mas isso não interessa. Não interessa, porque não vivemos com a vida dos outros. Não vivemos através da vida dos outros. E se um ato de criação pode ser o gesto mais sublime de uma vida inteira, de que nos serve ficarmos reféns do jogo das vontades que nos são exteriores?
Podemos perseverar numa dor intensa, medrar na mais profunda amargura, colher as rosáceas da injustiça e jogá-las contra os deuses iníquos. Podemos tomar lugar num miradouro de onde se perfila a vida inteira, a pretérita e a que julgamos estar fadada. Podemos esquecer o tempo presente mercê da insuportável dor, da dor silenciosa que nos desossa. Ou podemos deitar o olhar por cima das mais altas montanhas, tocar com os dedos nas flores frescas ungidas pela madrugada, desfolhar o mar através de uma janela, sentir a pele quente que substitui a frescura da manhã embebida nos lençóis, tomar lugar na plateia e provar as profundezas do teatro que segue por diante. Podemos ajuramentar o umbilical sentimento, no meio de tudo isto. O sentimento indestrutível. Podemos coabitar em dois universos que não são fungíveis. Sendo zeladores dos campos floridos onde se colhe o perfume que incensa a vida, o perfume que empresta os sentidos para o tempo em que investimos (a posteridade). Abraçados.
Juntamos os braços dantes frios e deixamos que os dois corpos se contagiem do calor esplêndido, devolvendo à terra a sementeira que dela faz um chão singular. Onde se dissolvem os fragmentos da dor entre o húmus que faz desabrochar alvoradas prometidas. Somos colecionadores de dias maiores. Somos os maiores intérpretes do tempo que é dado a conhecer. Entre a sagração da vida, nos corpos que dançam em uníssono sob a batuta de uma música, a música de uma vida só, que aplaca as dores que se insinuam num silêncio ensurdecedor.

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