Pale Dian, “In a Day”, in https://www.youtube.com/watch?v=n_W-pkh0-EY
Era cedo. Fazia horas até que fosse hora. Os pés
arrastavam-se, vagarosos, pelas ruas em volta. Sem nada para fazer. Andando. Mais
à frente, uma vidraça protegendo árvores interiores mostrava, pretensiosamente,
a frontaria de uma “agência de modelos”. Pensou nos meninos e meninas que
entraram nas instalações propondo os corpos para a função. E quantos não terão
de lá saído lavados em lágrimas, ou apenas com a frustração de verem o sonho
adiado até à próxima agência de modelos. Ou o contrário: quantos modelos
tiveram serventia a partir de candidaturas espontâneas de gente a quem se
convencionou alcunhar “gente bonita”?
Pois tem de se tratar de “gente bonita” – e, de preferência
artificialmente bonita, ou detentora de uma beleza artificial. Ajuramente-se a
subjetividade da beleza, que os gurus das agências de modelos saberão usar as
tintas objetivas que configuram a beleza. A beleza que interessa num momento
certo, para uma certa função. De repente, desviou as atenções das reflexões
preguiçosas, que eram como o tempo que queria matar – o tempo morto. Desviou,
para imaginar que ele entrava nas instalações da agência de modelos a propor-se
como tal. O que diriam os gurus? Que já era velho para a função? Pois se há
dias correu mundo a notícia de um japonês de mais de oitenta anos que desfilou
na passerelle pela primeira vez. Os
paradigmas mudam. Deixam de o ser quando outros paradigmas sobem à tona, maleáveis
como devem ser para incorporarem as circunstâncias que mudam e que são tutoras
de novas exigências.
Persistiu no pensamento herege: que resposta dariam à
sua candidatura espontânea? Era um pensamento herege. Não tinha a função de
modelo entre as recomendáveis (por assim dizer). Era logo tomado de assalto
pela imagem feita, talvez apenas preconceito, de frivolidade. Fazia questão de
não se misturar com gente frívola. Em estando só ao nível das suposições, e
porque continuava a ser preciso matar o tempo até que fossem horas, continuou o
exercício. Dir-lhe-iam para ter siso, que já vinha a destempo para ser modelo?
(Assumia que reunia os demais predicados. O que talvez fosse pressuposto apenas
seu, nem que fosse só para agilizar o palco conjecturado.)
Mas ainda era cedo. A porta estava fechada. A agência de
modelos só abria mais tarde. Também extemporâneo, afinal, o seu exercício. A resposta
ficou deserta. Não se pensou mais no assunto. Era um não-assunto.
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