16.9.16

O modelo extemporâneo

Pale Dian, “In a Day”, in https://www.youtube.com/watch?v=n_W-pkh0-EY
Era cedo. Fazia horas até que fosse hora. Os pés arrastavam-se, vagarosos, pelas ruas em volta. Sem nada para fazer. Andando. Mais à frente, uma vidraça protegendo árvores interiores mostrava, pretensiosamente, a frontaria de uma “agência de modelos”. Pensou nos meninos e meninas que entraram nas instalações propondo os corpos para a função. E quantos não terão de lá saído lavados em lágrimas, ou apenas com a frustração de verem o sonho adiado até à próxima agência de modelos. Ou o contrário: quantos modelos tiveram serventia a partir de candidaturas espontâneas de gente a quem se convencionou alcunhar “gente bonita”?
Pois tem de se tratar de “gente bonita” – e, de preferência artificialmente bonita, ou detentora de uma beleza artificial. Ajuramente-se a subjetividade da beleza, que os gurus das agências de modelos saberão usar as tintas objetivas que configuram a beleza. A beleza que interessa num momento certo, para uma certa função. De repente, desviou as atenções das reflexões preguiçosas, que eram como o tempo que queria matar – o tempo morto. Desviou, para imaginar que ele entrava nas instalações da agência de modelos a propor-se como tal. O que diriam os gurus? Que já era velho para a função? Pois se há dias correu mundo a notícia de um japonês de mais de oitenta anos que desfilou na passerelle pela primeira vez. Os paradigmas mudam. Deixam de o ser quando outros paradigmas sobem à tona, maleáveis como devem ser para incorporarem as circunstâncias que mudam e que são tutoras de novas exigências.
Persistiu no pensamento herege: que resposta dariam à sua candidatura espontânea? Era um pensamento herege. Não tinha a função de modelo entre as recomendáveis (por assim dizer). Era logo tomado de assalto pela imagem feita, talvez apenas preconceito, de frivolidade. Fazia questão de não se misturar com gente frívola. Em estando só ao nível das suposições, e porque continuava a ser preciso matar o tempo até que fossem horas, continuou o exercício. Dir-lhe-iam para ter siso, que já vinha a destempo para ser modelo? (Assumia que reunia os demais predicados. O que talvez fosse pressuposto apenas seu, nem que fosse só para agilizar o palco conjecturado.)
Mas ainda era cedo. A porta estava fechada. A agência de modelos só abria mais tarde. Também extemporâneo, afinal, o seu exercício. A resposta ficou deserta. Não se pensou mais no assunto. Era um não-assunto.

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