26.9.16

Mira alta

Underworld, “Nylon Strung”, in https://www.youtube.com/watch?v=SHhCiu5JA3g
Nunca olhava para o chão. Não o admitia perante os outros: tinha uma fobia com os pés e com os sapatos (porque os sapatos acobertavam os pés). Quem o visse, di-lo-ia altivo. Exibia um andar empolado, vaidoso, o nariz sempre afinado por um quadrante acima de planos a ele horizontais. Outros, di-lo-iam cabeça no ar, pois o ar azamboado quadrava com um princípio geral da distração.
Não era uma coisa nem a outra. Teimava em nunca olhar para o chão quando ia pelas ruas fora. No seu íntimo arregimentava as vantagens de tal procedimento: não padecia de um mal usual dos nativos de uma cidade: de tão habituados às ruas que repetem vezes sem conta, não inquirem o olhar para planos mais elevados e falham lugares pitorescos na cartografia dos edifícios. Estão em contravenção com a cidade que conhecem pela rama. Perdem em conhecimento para os turistas que, desconhecedores da cidade, convocam a sede de conhecimento e erguem o olhar para os planos elevados, travando conhecimento com os edifícios que merecem uma medalha em concursos de arquitetura.
Era um pouco como um forasteiro na sua própria cidade. Mas a fobia dos pés (e dos sapatos) era uma coisa militante, impregnada no mais profundo de si. Ganhou resistência ao olhar taciturno pelas experiências que foram seu trauma. No verão, os pés horríveis à mostra dentro de chinelos, compondo par inestético. Fora do verão, sapatos às vezes rotos, sapatos às vezes sujos, sapatos às vezes também inestéticos, sapatos às vezes combinando várias daquelas hipóteses. Conseguiu omitir a origem do trauma com um método seguido com diligência: “a bem dizer” – interiorizou – “as pessoas não têm os pés (ou os sapatos) como idiossincrasia. Não é o seu cartão de visita. Para o acharmos” – concluiu a interiorização – “temos de desviar o olhar mais acima”. Às vezes, bem acima da horizontalidade medida pelos olhos, quando pela frente nos surgem as pessoas grandes (que, todavia, não são necessariamente as grandes pessoas).
E assim deu conta que a mira alta era terapêutica.

Sem comentários: