Pixies, “Debaser”, in https://www.youtube.com/watch?v=PVyS9JwtFoQ
Ensaio, como verbo: ensaiamos o modo de retribuir à vida
o muito, ou o pouco, ou o suficiente, que ela consagrou. É uma ideia que
merece, ao menos, começo de formulação.
Todavia, o exercício aborta aos primeiros instantes. Talvez
haja coisas que não merecem retribuição, que não estão fadadas para a retribuição.
Julgar que somos peões aleatórios numa ordem qualquer onde está uma divindade,
um destino, ou uma fórmula a confirmar uma certa casualidade, distribuindo
prebendas e angústias, proezas e fracassos, predicados e fragilidades, é um
tremendo erro metódico. O ensaio soçobra às primeiras intenções.
Não devemos nada. A ninguém, a não ser àqueles que juntaram
condições sem as quais não seria possível afinar a mira a um certo propósito. O
que faz parte das condições normais por que se rege o curso da vida, no fim de
contas. Um agradecimento é devido. Às vezes, pensamos que a justiça impõe a retribuição
a quem juntou tais condições, mais à frente. Que não seja vista como retribuição
que era a petição de princípio do ensaio (substantivo) sobre o ensaio (verbo)
de retribuir à vida o muito que ela nos consagrou. Pois nessa ordem de ideias,
não estarei errado se conjeturar que as coisas seguem uma ordem e que a nossa
vontade pode, no máximo, ser fator destruidor dessa ordem e dos fatores que se
ensaiam para a tenção cobiçada.
Podemos ser os agentes que determinam o fracasso do bem a
que queremos chegar se medimos as forças no sentido contrário ao necessário
para o propósito chegar às mãos. Por outras palavras: é suficiente saber o que apetece
e o que não devemos pôr em ação para não perturbar essa aspiração. O resto flui
como tem de fluir, esperando pela medida certa do tempo, pelas pessoas que
deixam de ser apenas figurantes anónimos, pelas palavras que se julgavam impossíveis,
por um teatro que se monta com a congeminação paciente das pedras em seu devido
lugar.
Há uma certa espontaneidade, contida naquilo que se
ensaia como exigível para atingir um fim, que pertence ao lugar de onde se
trazem os ingredientes que consumam a aspiração. Só temos de saber a finalidade
pretendida e deixar o pensamento fluir, sem esbarrar nos sobressaltos que
alquebram memória e vontade, para chegar a ter o sabor das coisas cobiçadas. Não
temos de prometer ao invisível que se congeminou a nosso favor a devolução de
uma medida qualquer da medida com que nos agraciou. As compensações não se ensaiam
tendo um vulto indemonstrável como destinatário. E talvez não faça sequer
sentido ensaiar a retribuição. A não ser que queiramos, em movimento narcisista,
depositar nas mãos próprias uma dádiva qualquer.
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