Protomartyr,
“Dope Cloud”, in https://www.youtube.com/watch?v=WFaIaAT9Up8
A estrada estava vazia. Talvez fosse do calor
insuportável, do calor insólito para aquelas paragens e naquela altura do ano.
Se deitasse o olhar ao longe, indagando o horizonte, intuía a estrada a
derreter por ação do calor.
Dentro do bar não se estava melhor. O empregado disse, contrariado,
que o ar condicionado estava avariado (enquanto o suor escorria em bica pelo
rosto abaixo). Até o bar estava mortiço, sem vivalma. Guardou uns minutos para
que uma cerveja matasse a sede. Ao menos a cerveja estava gelada. Pediu a
segunda cerveja. Não habituado ao consumo plural de cervejas (ou de qualquer
outro género de álcool), a meio da segunda cerveja começou a ser assaltado por
miragens do pensamento. Por outras palavras, o pensamento parecia não fluir com
nitidez. Podia ser apenas o calor a calcinar o que sobrava da lucidez (que,
concedia, não era muita). Podia ser que a combinação de duas cervejas bebidas
quase a eito e o calor que deixava os corpos pestilentos tivesse o mesmo efeito
que (diz-se) o consumo de álcool quando os aviões voam alto. Pôs a especulação
de lado. Apoquentava-o, para além do calor inusitado, o avesso do pensamento
que se pusera. Uma fração de tempo consumia-se naquele entardecer melancólico,
era como se a estrada terminasse no bar e já não houvesse outro sítio para ir.
Não era bem assim – não podia ser assim. O bar fechava à meia-noite. Mas ainda
faltava muito tempo para a meia-noite, não era hipótese arrastar-se tanto tempo
naquele bar insalubre e apoderado pelo calor importado do ambiente exterior.
Ou talvez não: pedira a terceira cerveja, servida pelo
empregado que, para sair do balcão até à mesa, ia contrafeito, o rosto cada vez
mais sorumbático, o suor encharcando a camisa fétida. Apeteceu-lhe provocar o
rapaz, ameaçá-lo com uma queixa ao patrão, ou talvez por queixa vertida no
livro de reclamações. Refreou os ímpetos. Podia ser do álcool a cuja quantidade
não estava habituado. Podia nem sequer conseguir alicerçar duas ideias seguidas
e inteligíveis se teimasse em registar a reclamação no livro correspondente. E,
assim como assim, tinha-se como pessoa cortês. O rapaz do bar não tinha culpa
de todo aquele palco medonho – da estrada vazia, do calor insuportável, do bar
pútrido, das cervejas bebidas para além da conta, da sua confusão mental.
Já era noite. A estrada continuava deserta. Ninguém
entrara no bar desde que a noite descera sobre o céu. O empregado denotava a
monotonia do lugar: o rosto pousado sobre os cotovelos, por sua vez repousados
sobre o balcão, enquanto assistia a um filme onde os tiros e as bulhas troavam
em berraria tão insuportável quanto o calor que não batia em retirada.
Ainda conseguia contar, pelo menos até cinco – o número
de garrafas de cerveja em forma de despojos. Ainda faltavam mais de duzentos
quilómetros até ao hotel que havia reservado. Não sabia se estava em condições
de pegar no automóvel. Não sabia se seria parado pela polícia e a noite dormida
numa esquadra. Estava farto daquele lugar. Farto do calor que não desistia. Jogou
a sua sorte. Antes de sair, interrompeu a concentração do empregado do bar e
pediu um café duplo. Deixou uma gorjeta generosa e o rapaz esboçou um sorriso
pela primeira vez. Desejou-lhe boa viagem, enquanto cambaleava para fora do
bar.
A estrada continuava deserta. Sem luz. Sem luzes sequer
visíveis ao fundo da longa reta. Sabia que o flanco estava virado do avesso
pelas cervejas em excesso e pelo pensamento em decomposição, mas meteu-se à
estrada. Fosse ao que fosse. Os quilómetros por diante seriam o tira-teimas.
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