22.9.16

O professor que distribuía cartões de visita nos semáforos

Morphine, “Buena” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=Hx6aO-vdpNQ
Já não se esperava o insólito. Coisas bizarras ganharam pergaminhos de normalidade. Os desprevenidos, resignados com a nova condição do mundo, lamentavam-se, sem forças para fazer o que fosse, que já não esperavam nada do mundo. Em seus sonhos, segregavam a fantasia de um mundo que deixara de existir. Todavia, no fim da curva há sempre a hipótese da perplexidade.
Um dia, durante o desassossego da manhã, quando as ruas da cidade estão apinhadas e o trânsito de automóveis espalha caos, um homem bem-apessoado afadigava-se na distribuição de uns papeis pelos condutores que aguardavam vez para o semáforo verde. Os condutores estavam habituados à refrega – ele era publicidade, a abundante publicidade, os jornais gratuitos, artistas circenses que gesticulavam pinos em manobras acrobáticas, mendigos estrangeiros que procuravam a piedade das pessoas já sem paciência ainda o dia acabara de nascer, curandeiros que propagandeavam dotes sobre-humanos para a resolução de maleitas diversas. Algumas pessoas, depois de receberem o papel entregue pelo homem bem-apessoado, tiveram o ritual de sempre: amarrotaram o papel, sem curiosidade para saber o que lá vinha escrito.
Outras pessoas, atónitas por nunca terem visto um homem impecavelmente vestido – mais parecendo um executivo a caminho de uma financeira onde se transacionam títulos bolsistas e se tecem jogos com a dívida dos Estados –, leram o papel distribuído. Era o cartão de visita de um professor universitário. Estava em angariação de alunos para a universidade onde ensinava; com a particularidade de os seduzir para as disciplinas que anunciava serem de sua regência. (Dir-se-ia serem disciplinas opcionais.) O homem prosseguia a função, atarefado, oferecendo cartões de visita e simpatia.
A palavra passou de boca em boca. Nos dias seguintes, já pouca gente era indiferente aos cartões de visita do professor universitário. Uma televisão sensacionalista fez estacionar uma equipa de reportagem para entrevistar o professor. Meses depois, corria a notícia que o professor somara glória na empreitada. As suas disciplinas estavam cheias de alunos. E o professor, promovido a elevada sinecura na estrutura da universidade, deixara de ser visita diária aos semáforos da movimentada avenida – e deixara de se apresentar bem-apessoado. O exemplo deixou um rasto: outros professores, também bem-apessoados (mas que dantes nunca primaram pela cuidada aparência), começaram a visitar semáforos das agitadas ruas em hora de ponta, na angariação de clientela.

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