Morphine, “Buena” (live),
in https://www.youtube.com/watch?v=Hx6aO-vdpNQ
Já não se esperava o insólito. Coisas bizarras ganharam
pergaminhos de normalidade. Os desprevenidos, resignados com a nova condição do
mundo, lamentavam-se, sem forças para fazer o que fosse, que já não esperavam
nada do mundo. Em seus sonhos, segregavam a fantasia de um mundo que deixara de
existir. Todavia, no fim da curva há sempre a hipótese da perplexidade.
Um dia, durante o desassossego da manhã, quando as ruas
da cidade estão apinhadas e o trânsito de automóveis espalha caos, um homem
bem-apessoado afadigava-se na distribuição de uns papeis pelos condutores que
aguardavam vez para o semáforo verde. Os condutores estavam habituados à
refrega – ele era publicidade, a abundante publicidade, os jornais gratuitos, artistas
circenses que gesticulavam pinos em manobras acrobáticas, mendigos estrangeiros
que procuravam a piedade das pessoas já sem paciência ainda o dia acabara de
nascer, curandeiros que propagandeavam dotes sobre-humanos para a resolução de
maleitas diversas. Algumas pessoas, depois de receberem o papel entregue pelo
homem bem-apessoado, tiveram o ritual de sempre: amarrotaram o papel, sem curiosidade
para saber o que lá vinha escrito.
Outras pessoas, atónitas por nunca terem visto um homem
impecavelmente vestido – mais parecendo um executivo a caminho de uma
financeira onde se transacionam títulos bolsistas e se tecem jogos com a dívida
dos Estados –, leram o papel distribuído. Era o cartão de visita de um
professor universitário. Estava em angariação de alunos para a universidade
onde ensinava; com a particularidade de os seduzir para as disciplinas que
anunciava serem de sua regência. (Dir-se-ia serem disciplinas opcionais.) O homem
prosseguia a função, atarefado, oferecendo cartões de visita e simpatia.
A palavra passou de boca em boca. Nos dias seguintes, já
pouca gente era indiferente aos cartões de visita do professor universitário. Uma
televisão sensacionalista fez estacionar uma equipa de reportagem para
entrevistar o professor. Meses depois, corria a notícia que o professor somara glória
na empreitada. As suas disciplinas estavam cheias de alunos. E o professor, promovido
a elevada sinecura na estrutura da universidade, deixara de ser visita diária
aos semáforos da movimentada avenida – e deixara de se apresentar bem-apessoado.
O exemplo deixou um rasto: outros professores, também bem-apessoados (mas que
dantes nunca primaram pela cuidada aparência), começaram a visitar semáforos
das agitadas ruas em hora de ponta, na angariação de clientela.
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