19.9.16

O alfaiate das capacidades

Darkside, “Paper Trails”, in https://www.youtube.com/watch?v=PAAUqBghiVo
Ilhas à deriva procuravam um lugar onde pudessem ser, enfim, tenentes. Erravam, sem lugar que conseguissem encontrar. Apoquentavam-se. Se não encontrassem um cais para lançarem âncora, não teriam um sítio no mapa. Tementes de ficarem excluídas da cartografia, ilhas tropeçando nesta adversidade procuravam quem lhes aconselhasse um método para não ficarem irremediavelmente perdidas. Alguém que lhes ensinasse como encontrar o chão liso entre as águas tumultuosas que teimavam em persistir.
Pediram conselho a um alfaiate das capacidades que as capacitasse a encontrarem um lugar no mapa – ou, ao menos, a desenharem um mapa só para elas. O alfaiate era bom ouvinte. Fazia parte das funções: não podia sugerir um remédio para as capacidades demandadas se não soubesse antes o diagnóstico da ilha sentada diante de si. Tinha de as ouvir, pacientemente, com critério, tomando notas e, à margem delas, fazendo comentários preliminares que serviriam de pista para a prescrição.
As ilhas flutuantes aceitavam entregar-se incondicionalmente à intuição do alfaiate das capacidades. Porque tinha de ser assim, sob pena de não se encontrarem por dentro de si mesmas. E porque o alfaiate das capacidades transbordava serenidade inspiradora; era fácil a qualquer ilha desajuizada confiar no alfaiate das capacidades. Por todo o lado, o perito era credor de elevada reputação. Ilhas dantes perdidas (mas agora ancoradas a um ponto no mapa) eram pródigas em encómios. Assim como assim, a gratidão exige um penhorado reconhecimento de quem ajudou a curar tão estrutural fraqueza. A agenda do alfaiate das capacidades estava a rebentar pelas costuras. Generoso, arranjava sempre um pedaço de tempo para receber mais uma ilha desapossada de firmamento.
Um dia, descobriram-se podres terríveis ao alfaiate das capacidades. E quase toda a gente desmentiu a sua reputação, virando-lhe o rosto quando com ele se cruzavam. Perdeu quase todas as ilhas errantes que tinha em carteira. Menos um punhado delas, e uns raros membros do grupo em redor, que sabiam separar as águas. O alfaiate das capacidades não tinha as suas capacidades diminuídas mercê dos privados vícios que mereciam censura social. Continuava a ser perito. E a ter direito a uma vida própria fora do castelo edificado onde curava as ilhas à deriva. Não interessava que o alfaiate das capacidades estivesse amordaçado à sua própria ilha à deriva.

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