7.9.16

Tira-teimas

Protomartyr, “Dope Cloud”, in https://www.youtube.com/watch?v=WFaIaAT9Up8
A estrada estava vazia. Talvez fosse do calor insuportável, do calor insólito para aquelas paragens e naquela altura do ano. Se deitasse o olhar ao longe, indagando o horizonte, intuía a estrada a derreter por ação do calor.
Dentro do bar não se estava melhor. O empregado disse, contrariado, que o ar condicionado estava avariado (enquanto o suor escorria em bica pelo rosto abaixo). Até o bar estava mortiço, sem vivalma. Guardou uns minutos para que uma cerveja matasse a sede. Ao menos a cerveja estava gelada. Pediu a segunda cerveja. Não habituado ao consumo plural de cervejas (ou de qualquer outro género de álcool), a meio da segunda cerveja começou a ser assaltado por miragens do pensamento. Por outras palavras, o pensamento parecia não fluir com nitidez. Podia ser apenas o calor a calcinar o que sobrava da lucidez (que, concedia, não era muita). Podia ser que a combinação de duas cervejas bebidas quase a eito e o calor que deixava os corpos pestilentos tivesse o mesmo efeito que (diz-se) o consumo de álcool quando os aviões voam alto. Pôs a especulação de lado. Apoquentava-o, para além do calor inusitado, o avesso do pensamento que se pusera. Uma fração de tempo consumia-se naquele entardecer melancólico, era como se a estrada terminasse no bar e já não houvesse outro sítio para ir. Não era bem assim – não podia ser assim. O bar fechava à meia-noite. Mas ainda faltava muito tempo para a meia-noite, não era hipótese arrastar-se tanto tempo naquele bar insalubre e apoderado pelo calor importado do ambiente exterior.
Ou talvez não: pedira a terceira cerveja, servida pelo empregado que, para sair do balcão até à mesa, ia contrafeito, o rosto cada vez mais sorumbático, o suor encharcando a camisa fétida. Apeteceu-lhe provocar o rapaz, ameaçá-lo com uma queixa ao patrão, ou talvez por queixa vertida no livro de reclamações. Refreou os ímpetos. Podia ser do álcool a cuja quantidade não estava habituado. Podia nem sequer conseguir alicerçar duas ideias seguidas e inteligíveis se teimasse em registar a reclamação no livro correspondente. E, assim como assim, tinha-se como pessoa cortês. O rapaz do bar não tinha culpa de todo aquele palco medonho – da estrada vazia, do calor insuportável, do bar pútrido, das cervejas bebidas para além da conta, da sua confusão mental.
Já era noite. A estrada continuava deserta. Ninguém entrara no bar desde que a noite descera sobre o céu. O empregado denotava a monotonia do lugar: o rosto pousado sobre os cotovelos, por sua vez repousados sobre o balcão, enquanto assistia a um filme onde os tiros e as bulhas troavam em berraria tão insuportável quanto o calor que não batia em retirada.
Ainda conseguia contar, pelo menos até cinco – o número de garrafas de cerveja em forma de despojos. Ainda faltavam mais de duzentos quilómetros até ao hotel que havia reservado. Não sabia se estava em condições de pegar no automóvel. Não sabia se seria parado pela polícia e a noite dormida numa esquadra. Estava farto daquele lugar. Farto do calor que não desistia. Jogou a sua sorte. Antes de sair, interrompeu a concentração do empregado do bar e pediu um café duplo. Deixou uma gorjeta generosa e o rapaz esboçou um sorriso pela primeira vez. Desejou-lhe boa viagem, enquanto cambaleava para fora do bar.
A estrada continuava deserta. Sem luz. Sem luzes sequer visíveis ao fundo da longa reta. Sabia que o flanco estava virado do avesso pelas cervejas em excesso e pelo pensamento em decomposição, mas meteu-se à estrada. Fosse ao que fosse. Os quilómetros por diante seriam o tira-teimas.

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