22.12.17

Conta-me tudo

Ryuichi Sakamoto, “ubi”, in https://www.youtube.com/watch?v=IG2zzxYMqDo    
Sem as linhagens malsãs, sem armas terçadas, sem ocasos aprontados como pretexto, sem o gongórico por estilo: conta-me tudo. Na vertigem do mais saber, no amplexo de onde tiramos à sorte o miradouro epistolar, no módico prazer do escutar tuas palavras. Conta-me tudo: até o que possa parecer frívolo, que na doçura da tua voz se transfigura em protocolar proclamação. Como se houvesse um púlpito à espera da tua subida e eu, único espetador, aguardasse ansiosamente as palavras em tua declamação. Por saber que no que me contares bebo a raiz quadrada da existência.
Conta-me tudo. O que houver sido adiado e até o que esteja para ser lido no futuro. Pois se “somos tutores do tempo que vem às nossas mãos”, dele somos seus mandantes e ao tempo sobra a obediência. Tiramos ao acaso, nas páginas de um livro, uma frase – como se o olhar tivesse fotografado essa frase, ou como se ela aparecesse sozinha a emoldurar a página: “Porém não há passado:/fora do tempo só existe a vida/uma luz imortal que o tempo mata.” (Gastão Cruz, Existência, Porto, Assírio & Alvim, 2017, p. 22)
Damos sequência à frase. Eu começo: “Temos de recusar a tirania do tempo. Como se a existência só aparecesse moldada pelo tempo.” É a tua vez: “E temos de reconstruir as medidas por que nos regemos. Desligar a existência de um modo que só é temporal, pois a existência é intemporal.” Metemos a cabeça dentro de uma clepsidra; queremos matá-la. Para o tempo não matar a luz imortal que se insinua, difusa e pouco nítida, quando estamos submergidos. Continuo: “Amedronta-nos a noite. A noite, uma falsa quimera incensada no gatilho do tempo.” Dás sequência: “Se as medidas continuarem perenes, teremos dia, entardecer, ocaso, noite, a prolongada noite, madrugada, alvorada, manhã, dia outra vez. E não passam de convenções, improdutivas menções não humanas, apenas um nexo determinado pelo impessoal tempo.” Sem esperar, acrescento: “Somos ludibriados pela fogueira acolhedora, onde depois somos despojados. É o maldito tempo que nos atrai, faz frio lá fora e queremos o conforto da fogueira.” Não demora o teu contributo: “Oxalá não fossemos açambarcados pelos zénites que trazem submissão. Não aprendemos nada. Parece que uma entidade superior inventou estas categorias para nos aprisionar por dentro delas. O tempo, caução da existência. E a insignificância da existência, enquanto existir deste modo.
Deixamos o vazio tomar conta da paisagem onde os nossos olhos se refletem. Dir-se-ia: deixamos o tempo correr – ou deixamos o tempo a correr. Não é o caso. Entrincheirados no vazio lapidar, onde o tempo não tem lugar, julgamos a existência pelo nosso, exclusivo, pêndulo. E concluis, parafraseando outra vez o poeta: “A vida é apenas um pouco mais velha do que a morte. Sobreviverá pouco à sua irmã mais nova. O que é a morte da morte? De que é feito esse breve momento entre a morte da morte e a morte da vida?” 

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