15.12.17

Corpo escondido (e sem rabo de fora)

LCD Soundsystem, “Call the Police” (Live on Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=ORGpezG5-Jc    
Devo ter um problema com o corpo. Será fraca autoestima – ou outros preconceitos que um psicólogo encartado trataria de encontrar justificação no almoxarife da infância. Exige-se reformulação, por imperativo de rigor: tenho um problema com a exposição pública do corpo. Ao ponto de não considerar, sequer em académica hipótese, a possibilidade. Não a considero em praias de nudistas (sem ter objeções ao nudismo). Não a considero, sobretudo, no viçoso modismo de arranjar um conjunto de castiços (ou castiças) convencendo-os a perfilarem a nudez em fotografias com o propósito de serem publicadas em beneméritos calendários.
Não me passa pela cabeça saber que olhos que não conheço se passeiam pelos pedaços do corpo meu desnudados em artística fotografia. À ideia vêm os ávidos recolectores de corpos alheios, imersos na curiosidade de mapear esses corpos, atirando o olhar desmesurado para cima dos pedaços de corpo expostos em semidesnuda fotografia. É uma imagem-pesadelo. Dirão: mas um corpo é apenas um corpo, a parte meramente corpórea, o material inútil como coisa tratado quando somos cadáveres. E mais dirão: pois não é do contemporâneo mundo aceitar-se como inevitável a coisificação do corpo, dado como mera coisa aos prazeres dos outros?
Será tudo isso – e tanto mais que quisermos para obnubilar a carga negativa da exposição dos corpos em sua nudez. Pouco disso me interessa. O corpo que trago em mim só a mim diz respeito. E por mais notável que fosse a obra de beneficência, ou o objetivo filantrópico, que resultasse num convite para a exposição de partes nuas do corpo, diria não. Nem serve de contemporização aduzir-se a espátula de que todos somos mirones dos corpos nus que nos aparecem, propositada ou inadvertidamente, à frente dos olhos. Muito menos aceitarei tratar-se de incoerente bitola: não sinto nada quando os corpos outros são por outros espiolhados. Não poderia dizer o mesmo se o meu fosse o alvo. Não o ofereço como semelhante dádiva contra meu pesar.
Também poderão alegar, em favor do voyeurismo ao contrário (que é aceitar emprestar os corpos seminus a fotografias), que as pessoas estão reféns do hedonismo e as carências de autoestima têm o efeito paradoxal da mostra pública de corpos. As pessoas sentem-se bem a mostrar o corpo, sentem-se confortáveis sabendo que são espiolhadas meticulosamente por olhos incontáveis. Estão no seu direito. Nada contra o moderno narcisismo. O que não me coloca como candidato ao modismo.
Devo ter um problema com o corpo, por conseguinte. É isso, ou a importunação da vaidade própria que é a levedura do voyeurismo do avesso.

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