26.12.17

Não eram renas, eram veados

Ride, “Vapour Trail” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=9bVS9j8NoZ0    
Era velho, mas sonhava que não passara de meninice. Era velho e sabia que naquela terra não havia natal ungido pela neve. Mas sonhava que no natal as ruas estavam apinhadas de neve e era preciso usar pás para cavar entre a neve um caminho para sair de casa. Era velho, tisnado pelas rugas da experiência; já deixara de lado a contabilidade dos natais, porque não tinha paciência para a contabilidade da idade. A sério: não sabia a idade, pelo menos não a sabia na ponta da língua. (Um destes dias, em tendo ido à médica, ela perguntou a idade. Teve de fazer cálculos a contar desde o ano do nascimento. No dia seguinte, já se tinha esquecido outra vez.)
Ainda assim, celebrava o natal com igual excitamento ao que tinha na infância. Mesmo sendo velho. Mesmo estando imerso na mais profunda solidão – os mais próximos tinham morrido ou tinham emigrado para distantes lugares. Não perdia a ilusão, contudo. Fazia a questão de repetir a palavra “ilusão” as vezes que fossem precisas, como se fosse sublinhada numa folha de papel onde tinha sido exaustivamente escrita. Se não ficasse extático com o imaginário do natal, era mais difícil aguentar as dores lancinantes que desde a solidão o corroíam.
Desde que ficara sozinho – e desde que recusara longas viagens para a partilha da época: o que valia para si como valia para os outros, a quem não queria impor o sacrifício de tão demorada demanda em sua homenagem – nunca passou o natal sozinho. Todos os natais arranjava soluções diferentes (sempre detestara a rotina e não era a velhice que o fazia capitular). Um amigo da escola subitamente encontrado no meio da rua; um mendigo, escolhido no critério sopesado da proximidade cultivada nos meses anteriores; uma mulher que amou e tão depressa desamou depois do natal; um albergue de descamisados onde era voluntário; um hotel, na companhia de uma senhora da elite que conhecera depois de publicar anúncio no jornal da cidade a solicitar companhia para a véspera de natal; um rapaz que fez passar por seu neto adotivo, antes de o ganapo ter entrado na maldita adolescência.
O velho sabia que não havia pai natal, nem renas oniricamente voadoras, nem a bondade ventilada passava da quadra – e desconfiava que o bacalhau e as filhoses e os formigos e as rabanadas e o queijo da serra eram faz-de-conta, como desconfiava que as luzes que ornamentavam as ruas eram uma desnecessária mnemónica. Sabia que eram melífluas as cançonetas de natal. E sabia – só ele sabia – que a fábula estava errada: o natal não era com renas, era com veados.
(O que fazia toda a diferença no imaginário natalício, segundo as suas robustas teorias.)

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