19.12.17

Natal impugnado: o Pai Natal foi apanhado na rede do assédio sexual

King Krule, “Dum Surfer”, in https://www.youtube.com/watch?v=K5-f1Bnltu8    
Os plumitivos – os primeiros a acordarem para a bombástica novidade – estavam boquiabertos, paralisados pela devastadora notícia que chegou às mãos. S. Nicolau não era santo nenhum. Trazia atrás de si um imenso rol de assédios sexuais. Seria, talvez, a última personagem de quem se podia esperar que o nome fosse arrastado para a lama de tamanho ultraje.
As denúncias começaram a chegar às redações. Vinham de todos os lados. O Pai Natal não era seletivo na escolha das vítimas. Não se podia acusar o homem de discriminação racial. Aliás, pela dimensão da amostra (que crescia a cada hora que passava), também não discriminava em razão do sexo ou da idade. Usando linguagem de caserna, “tudo o que vinha à rede era peixe”. Serviu para acalmar o clamor popular contra os extravagantes que vitimizaram crianças, pois havia histórias de aproximações menos dignas a meninos e meninas de tenra idade. Ao menos, a obra poética de um emérito sociólogo coimbrão ficava vingada – e, de uma assentada, fazia-se a justiça divina de pôr o emérito sociólogo coimbrão em sentida solidariedade com o Pai Natal (o que exigia, como condição prévia, que o emérito sociólogo coimbrão começasse a acreditar na personagem inventada pela Coca Cola).
Imperou um módico de bom-senso nas redações dos jornais, televisões e rádios. A autocensura não deixou vir ao conhecimento do público os escabrosos enredos que davam conta da marialva, patológica condição do Pai Natal. Até os mais sensacionalistas órgãos de comunicação social aceitaram o pacto de silêncio. Não se podia destruir o Natal – era o pregão de ordem que as grandes cúpulas (ou seja, sem receio de escorregar para uma teoria da conspiração, os detentores do grande capital, a quem mais aproveita o consumista Natal) enviaram para as redações. Mas o grande mal já estava feito, irremediável. O Pai Natal estava impedido de ser Pai Natal. Com o Pai Natal demitido de funções, como se executava o Natal?
Outro dilema tocou a superfície: como se explicava a ausência de Natal às criancinhas? Os mais adultos, embebidos num ceticismo metódico, não eram problema: assim como assim, não acreditavam no Pai Natal – por maioria de razão, não acreditaram na notícia. Aliás, se quisessem acreditar no enredo, não entendiam como podia ser possível um ancião tão atarefado ainda ter tempo para espalhar o anti charme próprio dos camionistas e de nem sequer ser criterioso na seleção dos assediados. Aliás, alguns destes céticos – dando-se a coincidência de estarem nos interstícios entre a meia-idade e a terceira-idade e de serem homens – passaram subitamente a acreditar no Pai Natal. Havia de se descobrir o segredo do velho. (E a pastilha azul não seria: os seus réditos tal não permitem, o Pai Natal é remediado.)
A grande dificuldade eram as criancinhas. Era um duplo problema. Primeiro, era preciso encontrar explicação convincente para o cancelamento do Natal – e preparar para o pranto geral. Segundo, essa explicação exigia uma patranha: se havia explicação que não podia ser prestada era a verdadeira, para não sitiar as criancinhas noutro trauma: como era possível o anafado e simpático Pai Natal ser um tarado sexual?
(E depois era preciso explicar-lhes o que é um tarado sexual. Correndo-se o risco suplementar de estar a formar um exército de futuros tarados sexuais, a julgar pela acrítica atração que os petizes têm pelo Pai Natal.)

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