5.12.17

Os aviões em correria picada no céu e a água que escorria do autoclismo

Sufjan Stevens, “Wallowa Lake Monster”, in https://www.youtube.com/watch?v=Kwo_Ucs-wc4    
Venham ao regaço os lugares-comuns, só para ver se é possível reunir meia-dúzia de pensamentos sem o agastamento da frivolidade.
Tudo começou ao volante, metido entre pensamentos dispersos, sem critério. Sem querer, o olhar apontou ao céu – já não em demanda da lua gigante, a única do ano, pujante no luar resplandecente que ainda respirava apesar de ser quase hora da alvorada; a hora era mais tardia e a claridade do pináculo do dia continuava a causar a exasperação cansativa de quem sente falta de um outono regado por chuva copiosa. Na lonjura do céu, quatro aviões pareciam disputar uma corrida. Sulcavam o céu quase lado a lado, um deles um pouco atrás, suficientemente altos para apenas serem visíveis as silhuetas que desenhavam um rasto branco à sua passagem. Lá veio o lugar-comum, entaramelado com um pensamento silencioso: para onde seguiriam os aviões? Seriam lugares já visitados?
A curiosidade não deixou arrefecer as interrogações gratuitas por muito tempo. Aproveitei a paragem num semáforo (em sabendo que o sinal vermelho é demorado) para ligar o telemóvel ao conhecimento. Três dos aviões iam em corrida desenfreada para chegarem mais depressa a Londres, o outro tinha Düsseldorf como destino. Mal o semáforo deu caução para retomar a marcha, um condutor à frente mudou de faixa de rodagem sem pré-aviso – o habitual suplício de ter de adivinhar as intenções dos condutores a quem devia ter sido comunicado que o pisca-pisca não é um extra. Esqueci-me da demanda anterior. Perdera o seu lugar na linha cronológica dos acontecimentos válidos para o pensamento desordenado.
Pelo meio, dei vazão a pequenas empreitadas pendentes e o esquecimento dos aviões avivou-se. O exercício deixara de ter agenda. Por imperativo de uma necessidade fisiológica, os pés meteram-se ao caminho da casa-de-banho mais próxima. Enquanto excretava, notei que, nas imediações, a água fluía, ruidosa e com caudal, de um autoclismo (porventura por distração do utente anterior – quis acreditar, em dia de otimismo antropológico, a contracenar com os copiosos indicadores dos dias anteriores que sugeriam o critério contrário). Estando assoberbados por uma estiagem sem precedentes, que até deu direito a rezas encomendadas por um clérigo e a campanhas de sensibilização para a poupança da água à distância dos nossos dedos, subi ao papel sintomático de orgulhoso cidadão ciente dos seus deveres sociais. Entrei no cubículo onde a água vertia e, não menosprezando os deveres do bom cidadão, rodei o manípulo do autoclismo até o caudal findar o inútil escoamento. Contributo inestimável para a poupança de água. A sociedade ficava-me a dever esta.
Ato contínuo, interiorizei a “proeza”: continuei sem entender os exemplares cidadãos que se ufanam de o ser. (Ou, talvez: não devesse haver necessidade de ostentar inúteis comendas por sermos o mínimo que nos compete.)

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