9.12.20

A metafísica da cozinha

Black Rebel Motorcycle Club, “Love Burns”, in https://www.youtube.com/watch?v=wV5b2RWK0e0

Sou do tempo em que fazia maionese segundo o método artesanal. Em cima de uma gema de ovo quebrada suavemente com um garfo, um fio de azeite – não podia ser mais do que um fio de azeite – somando-se à gema em crescendo, depois de temperada com umas gotas de limão (ou vinagre, de acordo com as preferências) e uma pitada de mostarda e outra de sal. O garfo em movimento contínuo, mexendo a gema para esta não talhar com a incorporação do azeite parcimonioso. Meia tijela de maionese demorava quarenta e cinco minutos de paciente labor. Nunca me soube tão bem a maionese – e menos agora que, com a cortesia de eletrodomésticos que facilitam a vida dos gastrónomos, se consegue o preparado em pouco mais de um minuto.

(Sou desse tempo, mas não o reivindico como caudilho da saudade. Não se trata de um exercício de nostalgia.)

Sou do tempo em que os homens não entravam na cozinha (salvo raras exceções). E também sou do tempo em que o paradigma se estilhaçou. Em primeiro lugar, como tributo a uma distribuição mais justa das tarefas domésticas. Em segundo lugar, pela utilidade heurística da culinária, autêntica pedagogia interior em constante movimento. Um utilitarismo, todavia, não reprovável. 

(Não estou seguro de que aquela seja a ordem, cronológica ou de prioridades.)  

A cozinha como lugar mitológico: a confeção culinária arrepia o trato da paz interior. Aplaca angústias, quando elas se soerguem no demais. É o aval de uma forma de criação para-artística, mesmo quando a elaboração de iguarias segue de perto um compêndio pantagruélico. A melhor indumentária está no avivar da criatividade, quando a confeção culinária não segue mandamentos outros se não os que se colhem na safra da própria criatividade. A gastronomia como manifestação poética. O experimentalismo tem um lugar reservado (da cozinha para a mesa). Os subprodutos admitidos em nome do experimentalismo não são rejeições da culinária. Fazem parte da função, como erros necessários que abonam a contínua aprendizagem.

“A cozinha é como um santuário”, alguém argumentou em tempos, aproximando-a de um lugar metafísico. Permito-me a correção: a cozinha é um santuário. Não como aproximação a uma metafísica, mas como metafísica em sentido próprio.

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