2.12.20

Bolshoi (short stories #283)

Queens of the Stone Age, “Vampyre of Time and Memory” (live on Conan O’Brien), in https://www.youtube.com/watch?v=k1itIVOvj7o

          Não precisamos de uma cortina de nevoeiro a cegar o olhar. Não marcamos fingimentos que açambarcam os palcos visitáveis. Dizem que entre a posse das faculdades e o telhado sem imunidade vai uma estepe árida, não recomendável aos sentidos. Mas quem disse que demandamos a purificação? Sabemos dos palcos onde contracenam os atores, os que interessam e os demais. Sabemos que os palcos são chãos inverosímeis, precipícios disfarçados pelo remoço do disfarce. Não transigimos: quem anda por dentro do sangue que circula por dentro de nós se não nós mesmos? Podemos titubear nos corrimões enferrujados que ferem as mãos. Mas não podemos recusar cicatrizes. São o biombo que nos refugia do passado. Se uma noite medonha coloniza o tempo e é sentida como se fosse imorredoira, não a acatamos como solilóquio que não admite contestação. Invertemos as fragilidades. Vamos ao magma onde adormece a improvável reminiscência que desembaraça as forças de que carecemos. Subimos a palco. Não estamos sozinhos. Não dão pela nossa presença. Ainda bem. Também não queremos saber de quem contracena. São presenças episódicas, avulsas, sem ordem combinada no inventário das coisas. As palavras puídas emudecem; delas não queremos paradeiro. Somos a água salgada que os mares reivindicam. Somos seus tutores. Não deixamos à porta os lugares esquecidos. Não deixamos a coreografia dos mercadores que, infatigáveis, perseguem a monotonia como se andassem à caça de fantasmas. De cima do palco, vemos melhor o entardecer. Vemos melhor, de cima do palco. Tudo. Fugimos dos néones que embaciam a lucidez. Não queremos ser rostos visíveis que hipotecam o anonimato. E podemos continuar em palco, tecendo com os dedos o nosso próprio teatro, desmentindo deus. Sem prazo de validade. Sem o embaraço do futuro. Sem tradução das palavras para todos os idiomas. Pois o único que interessa é o que entretecemos no Bolshoi da nossa invenção. 

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