16.12.20

A janela permanente

Ólafur Arnalds, “re:member” (live in Harpa), in https://www.youtube.com/watch?v=Q4MBK2rs9lQ
 

Não contem com aguarelas. Não contem com a pele dourada pelo abismo de um dia. Não contem com palavras atraiçoadas por um vulto. Não contem com os braços abertos até ao infinito, como se todas as caravelas se abrigassem no peito intermédio. Não contem com proezas. Não contem com a afoiteza, que não quadra com a imponência de um fracassado. Não contem com balas ricocheteadas no desfiladeiro prometido.

Contem com um dédalo inebriante recolhendo as lágrimas nas pálpebras dos malmequeres. Contem com um espírito insubmisso. Contem com as ondas intempestivas que desembrulham as estrofes ajuramentadas. Contem com um sol contra o inverno telúrico. Contem com a chuva que dissuade o estio terrífico. Contem com as mães nunca gastas que guardam uma palavra ornamentada. Contem com os soalhos gastos e, todavia, molduras de um firme assentar. Contem com a escotilha a vigiar os mares apetecíveis. Contem com um promontório ventoso que desembacia os rudes espasmos da angústia. 

E contem, dê o mundo as voltas que der, com um osso fundente de incerteza. Contem com as árvores frondosas que são o tear que urde a planície aparatosa. Contem com a voz compassada, estonada, ângulo matricial de outros pesares. Contem com marés sempre vivas, onde se entroniza o sopor. Contem com silêncios que contrariam a indigência das palavras. Contem com a frugalidade ascensional, uma imensa jarra a coalescer nas cabeças que se interrompem de espanto. Contem com um murmúrio estrelar contra a algidez dos que capitulam.

Não contem com gongórica farsa, os militares pavoneados na sofreguidão de comendas estultas. Não contem com as mãos sedentas de vingança, com as cicatrizes que são a sua cartografia. Não contem com a boca inaugurada para o lodo irrepresentável. Não contem com a fala comprometida com a sobranceria. Não contem com o diadema vernicoso ostentado no avesso da alma. Não contem com a rígida desafeição de tudo, o palco onde, contrafeitas, dançam as palavras puídas. 

E contem com uma janela permanente. Suma representação da alma trespassada pela perenidade. Da irrequieta alma emoldurada na janela.   

Sem comentários: