17.12.20

Quando dizias “não dezembrarás”, acendia a candeia contra a tirania do tempo

LCD Soundsystem, “All My Friends”, in https://www.youtube.com/watch?v=aygY5OqMuKE

Dizias: “não dezembrarás”. E eu sabia o que querias dizer. Era uma petição de princípio contra a decadência. A recusa de um último suspiro em forma de calendário, como se fosse terminal e o tempo ficasse por ali. Mas não era uma advertência a favor da finitude irrenunciável. Era uma mnemónica na clave da renovação. A avocação da estação seguinte, sobreposta à inquietação da decadência. O hálito povoado pelas vitaminas exigíveis.

E eu dizia, em concordância com essa mnemónica, que era preciso manter acesas as brasas que acendiam o sangue em demanda de ebulição. Que ninguém capitulasse – ou, se os ouvidos outros fossem surdos à convocatória, que não fôssemos nós as presas preferidas da capitulação. Havia sempre ângulos diferentes. Olhares a reinventarem a coisa mesma. Maneiras diferentes de dizer as palavras que importavam. A fuga das coisas que importunavam. Um cais escondido algures no labirinto dos seres. Dezembraria, consciente de que dezembro é a porta entreaberta para um janeiro qualquer (ou para o mês que nos apetecesse ser). 

Dizíamos, em uníssono, que não há contratempos a tempo de desmatarem o tempo que a nós chamámos. Que nos tornáramos síndicos de tudo o que nos dizia respeito, exigentes tradutores da lava que em nós era erupção inacabada. Seríamos dezembro à espera de janeiro, janeiro à espera de fevereiro, e assim sucessivamente, numa imparável cronologia escrita nas veias que eram o manancial comum. Não queríamos adormecer ao som do vento iracundo e da chuva esmagadora que, estrepitosa, empobrecia na janela. Queríamos ser um sono tomado pela ousadia das artes, pelo novelo da geografia ainda por conhecer, pelas estrofes todas que viessem à nossa lavra. Dezembraríamos a tempo de sermos janeiro, não tardava nada.

Recusávamos os costumes. Recusávamos as tiranias diletantes que bolçam imperativos categóricos e modas estonteantes, o vibrante santuário onde a perfeição se congemina na exigível convivência social. Até nisso impedíamos que dezembrar fosse sinónimo de decadência. Pois somos dissidentes a destempo. Contra a matilha do tempo, somos orgulhosos perfecionistas. Não damos de barato a fragilidade às urnas sequiosas. Não damos a impureza da alma ao escrutínio dos cobrancistas do sistema. 

Tecemos o calendário que nos convém com os dedos ávidos. Redesenhando o tempo, se preciso for. Contra a decadência. A favor de nós.

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