4.12.20

Um dia sem geografia

Idles, “Kill Them With Kindness”, in https://www.youtube.com/watch?v=SELdxmlg2Cw

Na casa do meio. Onde a bússola se perdeu na arritmia das paredes. As inquietações aninhadas no luar intermitente são desmatadas. Como as vozes que povoam a noite. Não se sabe de onde proveem. Desde a candeia militantemente acesa, esboço o olhar confrangedor: “o mundo está às avessas”, protestam os conservadores sem remédio. Eu não o hei de consentir.

As ruas não parecem boa companhia. Estão desertas. E nem as iluminações natalícias conseguem romper o ar pesado que se arqueia sobre as casas, amordaçando-as. Não se sabe nada dos seus habitantes. Não se sabe se atravessam o tempo da ausência com ardis, como se fosse possível apressá-lo. Não se sabe se a angústia os consome até à medula e o suor é a lava insondável que se anuncia como seu templo. Não se pode perquirir o húmus subcutâneo. Palavras tontas ficam por conta da especulação. Não recuso a ruína dos oráculos.

A fala sentida é a medalha dos lamentos que se orquestram desde a manhã baça. Os olhos marcados, como se se deitassem sobre as pálpebras, alinhavam o compêndio dos infaustos. Segue-se um cortejo de apiedados, que caminham em forma de via sacra como se fosse imperativo expiarem a angústia diante de olhares que destilam mesquinhez. Estes dias não têm lugar. Eles acontecem, mas não têm um lugar geográfico. São órfãos. 

Os arbustos exibem os despojos da humidade noturna e os olhares que os inventariam encontram redenção. As pequenas gotículas presas nas hastes dos arbustos são recolhidas, como é o ofício das abelhas em polinização. É disso que precisamos: de um tempo arrastado, dias metamorfoseados em semanas, semanas em meses, as palavras reduzidas à sua simplicidade, como se o idioma fosse reinventado a partir do nada. 

Não quero outras bandeiras. Não me imponham hinos nem medalhas de bom comportamento. Dispenso as tiranias disfarçadas de magnanimidade, como se houvesse entes predestinados para emoldurar o sentir do todo. Prefiro hibernar nas ameias de um lugar irrepetível e dele fazer um tempo irrepetível. Como se desse tempo extraísse a parte sumarenta e o exibisse como tradução da minha meã condição. Um dia sem geografia, subtraído às garras ancilares dos patriarcas da beatitude. Até que seja só eu, sem o tempo por desamparo, e as palavras sem fronteiras a adornar o horizonte que testemunha o meu olhar.

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